Perícia em evidência 17/12/2025

Casos de feminicídio chocam e nos envergonham. Como a Perícia enfrenta esse tema?

Como sociedade, continuamos a demonstrar nosso despreparo para lidar com o ódio que leva à morte milhares de mulheres no Brasil

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Nas últimas semanas, casos envolvendo mortes de mulheres repercutiram na mídia. No dia 28 de novembro, duas mulheres foram brutalmente assassinadas no Rio de Janeiro, mortas talvez por contrariarem a lógica machista ao exercerem com eficiência suas atividades e por mérito se colocarem em posições de comando. Allane de Souza Pedrotti Mattos e Layse Costa Pinheiro, ambas com trajetórias destacadas na educação e na psicologia, funcionárias de uma unidade do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) localizada no Maracanã, no Rio de Janeiro. Um ex-funcionário da instituição, que cometeu suicídio após o crime, é o acusado de matá-las a tiros. A motivação ainda é investigada, mas, até o momento, temos como hipótese concreta a de que possa estar ligada a um feminicídio por controle machista, não se descartando também um ataque direcionado por razões internas ainda não esclarecidas.

Em Brasília, um caso não menos impactante ocorreu no último dia 5 de dezembro: a soldada Maria de Lourdes Freire Matos, de 25 anos, foi morta em um quartel no Setor Militar Urbano (SMU) em Brasília. O suspeito, Kelvin Barros da Silva, também um soldado, com 21 anos de idade, foi preso no dia seguinte. A vítima era saxofonista da banda do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas e estava no Exército há apenas cinco meses. Após atenderem uma ocorrência de incêndio e encontrarem um corpo carbonizado, os bombeiros acionaram a Polícia Civil, que verificou que no corpo havia uma faca cravada no pescoço. Após a realização da perícia de local e a confirmação de que não seria um fato acidental, as diligências rapidamente apontaram para o suspeito, que acabou confirmando o assassinato. O suposto autor tinha sido visto com a vítima pouco tempo antes do incêndio. Durante seu primeiro interrogatório, Kelvin Barros disse que teve um relacionamento com a vítima, afirmando que ambos teriam discutido porque ela queria que ele terminasse um outro relacionamento, fato veementemente negado pela família da vítima.

Na dinâmica relatada, o autor afirma que Maria sacou uma arma, a qual ele teria segurado enquanto ela tentava inserir munições. Então, de posse de uma faca militar da vítima, ele teria desferido um golpe e acertado o pescoço da soldada. Na sequência, buscou álcool no banheiro e, com seu isqueiro, ateou fogo no local, fugindo com a arma da vítima. Para ocultar esse vestígio, disse ter jogado a arma em um bueiro na região do Itapoã – a cerca de 30 quilômetros do local do crime. No dia de sua prisão, a polícia recuperou a arma e provavelmente realizou outra perícia nesse local. Até o momento em que este artigo foi concluído, o celular da vítima não havia sido encontrado, possivelmente destruído pelas chamas.

No caso de Brasília serão diversos os exames periciais, entre os quais:

  • Exames de Local de Crime: no local de incêndio, com identificação da causa, possíveis focos, material empregado (acelerantes);
  • Exame no corpo (cadavérico): com causa da morte e outros detalhes importantes;
  • Exame do instrumento: faca;
  • Exame da arma de fogo: eficiência, identificação de número de série;
  • Exame de dispositivo(s): recuperação de mensagens e outros arquivos no aparelho do autor (e da vítima, caso seja encontrado);
  • Exames de imagens de câmeras de segurança do quartel: caso façam parte do inquérito;

O exame cadavérico do IML já foi concluído e revelou que Maria de Lourdes levou duas facadas no pescoço e que apresentava um hematoma na barriga, provavelmente de um soco ou de uma joelhada. A perícia também indicou que ela morreu antes do incêndio, ou seja, quando o sinistro se instalou ela já não respirava, uma vez que em suas vias respiratórias não foram encontrados vestígios de fuligem associados à evolução do fogo.

Conforme já destacamos em nossa coluna publicada em 9 de março de 2022, na Edição nº 128 do Fonte Segura:

“Falando especificamente da perícia em local de feminicídio, temos observado nos últimos anos um movimento muito positivo: instituições se debruçaram para criar protocolos periciais específicos para o crime de feminicídio, o que tem auxiliado não apenas a polícia judiciária no enquadramento desse tipo de crime, mas também aos da justiça na promoção da redução da impunidade. São exemplos dessas iniciativas a publicação, pela Polícia Civil do Distrito Federal, de um protocolo inovador, ainda no ano de 2017, denominado Procedimento Operacional Padrão e descrito como Abordagem Pericial de Locais de Feminicídio; e o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, publicado em 2020 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que inclui os protocolos destinados à atividade pericial (perícia de local, medicina legal, DNA e identificação papiloscópica), além do aspecto investigativo.”

Como sociedade, continuamos a demonstrar nosso despreparo para lidar com o ódio que leva à morte milhares de mulheres no Brasil. A vergonha que aqueles que se importam sentem por seus pares, responsáveis pelas agressões e mortes, precisa ser transformada em iniciativas cada vez mais eficazes, ações educativas, preventivas e outras que reduzam ainda mais a impunidade. É um árduo caminho, cuja busca não permite descanso.

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