Múltiplas Vozes 11/06/2025

Capacitação institucional: a chave para o combate efetivo à corrupção no Brasil

A confiança social nas instituições está abalada, muitas vezes devido ao uso instrumental do combate à corrupção como ferramenta de afronta política

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Daiane Londero

Doutora em Políticas Públicas (UFRGS) e pesquisadora do NEDIPP (UFRGS)

Nas últimas décadas, a corrupção tornou-se um dos principais focos de preocupação da sociedade brasileira. Ainda que a percepção popular de impunidade permaneça forte, especialmente diante da morosidade do Judiciário e da sensação de reincidência de práticas ilícitas entre agentes públicos, é inegável que houve avanços importantes na forma como o Estado brasileiro enfrenta o problema. Um dos protagonistas dessa mudança é o Ministério Público Federal (MPF), cuja atuação se transformou radicalmente desde a promulgação da Constituição de 1988. O que explica essa transformação? Mais do que reformas legislativas ou escândalos midiáticos, o que alavancou a atuação do MPF no enfrentamento à corrupção foi o desenvolvimento deliberado e contínuo de suas capacidades institucionais.

Não se trata de um argumento retórico, mas de uma constatação empírica que se sustenta em dados concretos e trajetória institucional. Entre 1988 e 2018, o MPF passou de uma atuação tímida e fragmentada para ocupar papel de liderança em investigações complexas e de alto impacto, como o caso Mensalão e, especialmente, a Operação Lava Jato. Esse protagonismo, contudo, não decorre unicamente do desenho constitucional que lhe conferiu autonomia e independência. Trata-se do resultado de decisões estratégicas, tomadas tanto internamente quanto por outros órgãos do Estado, que permitiram a construção de uma estrutura robusta, especializada e coordenada para o enfrentamento da corrupção.

A principal tese que sustenta essa transformação é clara: enfrentar a corrupção não é uma função que se cumpre com boas intenções, mas sim com instituições capacitadas. No caso do MPF, isso significou investimento em pessoal qualificado, orçamento suficiente, modernização da estrutura administrativa, formação de núcleos especializados, articulação interinstitucional e uso estratégico de instrumentos legais, como acordos de colaboração premiada e de não persecução penal. Em outras palavras, foi a construção de uma burocracia eficiente e autônoma que fez a diferença.

Para os profissionais da segurança pública, essa leitura traz implicações práticas. Em primeiro lugar, evidencia que o enfrentamento à corrupção depende de articulação entre instituições. O sistema de accountability legal, que engloba as etapas de detecção, investigação, acusação, julgamento e execução da pena, exige cooperação entre órgãos como Ministério Público, Polícia Judiciária e Poder Judiciário. A investigação policial, por mais técnica que seja, só alcançará resultados efetivos se estiver inserida em uma engrenagem institucional funcional, em que as informações fluem, os objetivos são comuns e as competências, respeitadas e coordenadas.

Em segundo lugar, a experiência do MPF revela que reformas legais, por si só, são insuficientes para mudar o comportamento das instituições. Desde 1988, o Brasil aprovou uma série de leis relevantes — como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a de Lavagem de Dinheiro (1998), a de Acesso à Informação (2011) e a Lei Anticorrupção (2013) —, mas o impacto prático dessas normas só se tornou visível quando elas foram acompanhadas por investimento institucional e direcionamento estratégico.

A especialização também se mostrou decisiva. A criação dos Núcleos de Combate à Corrupção (NCCs), o direcionamento de treinamentos técnicos por meio da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) e o direcionamento de forças-tarefas como a da Lava Jato foram instrumentos internos que ampliaram exponencialmente a capacidade do MPF de atuar de forma eficiente. Essas medidas permitiram a formação de equipes técnicas com domínio sobre delitos econômicos complexos, como lavagem de dinheiro, fraudes em licitações e desvios orçamentários — áreas que exigem conhecimento específico e abordagem coordenada.

Outro fator relevante é a autonomia institucional. O MPF desfruta de independência funcional garantida pela Constituição, o que lhe confere liberdade para investigar e denunciar agentes públicos, inclusive de alto escalão. No entanto, autonomia, quando desvinculada de responsabilidade institucional, pode se tornar fonte de instabilidade. Por isso, o papel do Procurador-Geral da República (PGR) é central. Embora não se possa afirmar que a forma de nomeação do PGR determine diretamente o volume de ações contra a corrupção, está claro que cada gestão imprime um ritmo e uma prioridade diferentes à atuação institucional. A liderança institucional pode tanto fomentar quanto enfraquecer o esforço anticorrupção.

Importante destacar que, mesmo com todas essas conquistas, o cenário brasileiro ainda está longe do ideal. A taxa de arquivamentos de inquéritos é alta, o tempo médio para conclusão de investigações é elevado, e muitas decisões judiciais demoram anos para transitar em julgado. O sistema é complexo, fragmentado e frequentemente capturado por disputas políticas e institucionais. Além disso, a confiança social nas instituições está abalada, muitas vezes devido ao uso instrumental do combate à corrupção como ferramenta de afronta política. Essas dificuldades não anulam os avanços, mas evidenciam a necessidade de uma abordagem mais sistêmica e menos personalista.

É preciso reforçar o papel das forças de segurança como parceiras fundamentais nesse processo. Delegados, peritos, agentes, policiais civis e militares compõem a base operacional do sistema de justiça e precisam estar plenamente integrados às estratégias institucionais de enfrentamento à corrupção. A investigação técnica, o cumprimento de mandados, a preservação da cadeia de custódia e a coleta adequada de provas são tarefas que dependem do trabalho conjunto entre polícias e promotores. Mais do que nunca, a cooperação entre as instituições precisa ser fortalecida com base em confiança, objetivos comuns e respeito mútuo.

A experiência do MPF nos últimos 30 anos oferece uma lição valiosa: o combate à corrupção não é uma cruzada individual, mas um esforço institucional sustentado por estrutura, método e visão estratégica. Não basta apenas buscar punições exemplares ou responder a escândalos com indignação. É necessário consolidar um ecossistema institucional capaz de prevenir, detectar, investigar e sancionar práticas corruptas de maneira contínua e eficaz.

O Brasil não superará seus problemas estruturais apenas com reformas legais ou operações de impacto. É preciso continuar investindo na construção de instituições sólidas, comprometidas com o interesse público e equipadas para enfrentar os desafios do presente. Para os profissionais da persecução penal, isso significa participar ativamente dessa construção, valorizando a técnica e fortalecendo as parcerias institucionais.

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