Caminhos dos Conselhos da Comunidade na execução penal
Até muito recentemente, os Conselhos da Comunidade permaneciam como 'letra morta da lei'. A partir de 2010 tivemos um incremento no número de conselhos e a qualificação de suas práticas, com destaque para a região sul, especialmente no estado do Paraná
Marco Antonio da Rocha
Doutor em Serviço Social e Políticas Sociais pela Universidade Estadual de Londrina, Pesquisador do LabGepen – Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB
Ainda que a participação da sociedade na execução penal venha sendo preconizada por organismos internacionais, notadamente pela ONU desde 1950, no Brasil tais recomendações só foram acolhidas em 1984, com a promulgação da Lei de Execução Penal.
Essa Lei, em seu artigo 4º, reza que “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança” e, como um dos mecanismos para este fim, determina a instalação, em cada comarca, de um órgão da execução penal denominado Conselho da Comunidade.
Contudo, apesar do teor deste artigo 4º e da importância da participação da sociedade local num órgão da execução penal, a LEP lhe dedica apenas três artigos. São eles os de n° 66 (instalação pelo Juiz da Execução), 80 (composição por um representante da associação comercial ou industrial, da Seção da Ordem dos Advogados do Brasil, da Defensoria Pública e Assistente Social indicado pela Delegacia Seccional do Conselho Nacional de Assistentes Sociais) e 81, sendo que este último trata das atribuições do Conselho:
Art. 81. Incumbe ao Conselho da Comunidade:
I – visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca;
II – entrevistar presos;
III – apresentar relatórios mensais ao Juiz da execução e ao Conselho Penitenciário;
IV – diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento. (Brasil, 1984).
Inúmeras críticas tem sido feitas à timidez com que a LEP abordou os Conselhos da Comunidade, entre as quais a falta de capacidade postulatória, que seria fundamental para sua independência e autonomia (LOSEKAN, 2009).
Diante do fato de que 20 anos após a promulgação da LEP os Conselhos da Comunidade permaneciam como letra morta da Lei, posto que sua implantação no país foi inexpressiva, o Executivo Federal instituiu, em 2004, a Comissão Nacional para Implementação e Acompanhamento dos Conselhos da Comunidade. Tal Comissão promoveu, entre 2007 e 2008, Encontros de Conselhos da Comunidade em todas as regiões do país. Outras ações de destaque, realizadas pelo DEPEN Nacional, foram a elaboração de “Matriz Curricular para Formação de Conselheiros da Comunidade” em 2010 e a realização, em dezembro de 2012, do I Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade, em Brasília.
Uma pesquisa nacional sobre os Conselhos da Comunidade[1] (Brasil, 2021), realizada pelo CNJ em parceria com o PNUD em 2020, contando com o respaldo e a intensa divulgação pelo Poder Judiciário em todo o país, foi respondida por apenas 404 Conselhos da Comunidade, dos quais 197 (48,7%) situavam-se na Região Sul do Brasil. Dos Conselhos respondentes da Região Sul, 138 situavam-se no Paraná. Considerando que o Brasil conta com 2.426 comarcas em 2024, infere-se que apenas 16,65% das Comarcas do país responderam à pesquisa.
No estado do Paraná, realidade na qual me insiro, assiste-se na última década a um forte e acelerado processo de mobilização e organização dos Conselhos da Comunidade, capitaneado pela Federação dos Conselhos da Comunidade do Estado do Paraná (FECCOMPAR), fundada em 2013.
Os debates provocados pela FECCOMPAR e o exercício de seu papel de representar e de defender os interesses dos Conselhos do Paraná tiveram como fruto, já em 2014, a publicação das Instruções Normativas Conjuntas nº 01/2014 e 02/2014, firmadas pelas Corregedorias do Ministério Público e do Tribunal de Justiça, contando com a participação da FECCOMPAR em seu processo de elaboração[2].
Não restam dúvidas de que esse processo vem produzindo visíveis resultados positivos, sendo um de seus indicativos o número de Conselhos existentes no Estado. Em abril de 2024 havia no Paraná 159 Conselhos devidamente regularizados e em funcionamento. Considerando a existência de 163 comarcas no Estado, tem-se que em apenas 2,5% delas não havia Conselho da Comunidade instalado.
Outros indicativos são o nível de organização (e decorrente força política) alcançado a partir da fundação da FECCOMPAR[3] além da qualidade do trabalho desenvolvido por esses Conselhos. Parcela significativa dos Conselhos da Comunidade do Paraná conta com pessoal administrativo e equipe técnica, desenvolvendo projetos nas áreas de atenção à pessoa privada de liberdade e seus familiares, atendimento a egressos, prevenção à violência e à violência doméstica (atendendo também aos homens autores de violência), prevenção ao uso e abuso de substâncias psicoativas, de remissão da pena, de cumprimento de alternativas penais, entre outros.
Entre os desafios postos aos Conselhos da Comunidade neste Estado encontram-se o de evitar tornarem-se uma agência substituta para execução de serviços que cabem ao executivo estadual e o de recusarem-se a atuar como órgão responsável pelo financiamento de obras e aquisição de materiais para unidades penais cuja responsabilidade pelo custeio também é do poder público estadual.
No sentido contrário, encontra-se a possibilidade de tais Conselhos virem a se firmar como instâncias de controle do Estado pela sociedade na área da execução penal, ampliando o debate sobre os modelos de execução penal com a sociedade, constituindo-se como um canal de denúncia de violações de direitos humanos e um aliado das forças progressistas na construção de novas modalidades de resposta ao crime, mais inteligentes, com menor custo e mais efetivas que a prisão.