Bullying: como previnir tragédias como a de Sobral?
Como as escolas brasileiras são muito heterogêneas entre si, faz mais sentido o desenvolvimento de uma estratégia de enfrentamento que tenha princípios gerais bem definidos, mas que permita adaptação aos diferentes contextos
Luiz Guilherme Scorzafave
Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (LEPES/USP) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O acontecimento da semana passada em Sobral/CE, no qual um estudante de Ensino Médio atirou em três colegas de classe, causou grande comoção na sociedade brasileira. No dia seguinte, diversos pesquisadores se posicionaram afirmando que a maior disponibilidade e facilidade de acesso a armas de fogo pode ter sido um elemento importante para que essa tragédia acontecesse. Também há a preocupação de que esse tipo de ocorrência seja mais frequente em face da ampliação da circulação de armas de fogo.
No entanto, neste artigo vou falar a respeito de um outro aspecto importante desse fenômeno, mas para o qual foi dada pouca atenção. A motivação alegada pelo estudante que atirou é que ele era vítima de bullying por parte dos estudantes que acabaram baleados.
O bullying é um fenômeno bastante estudado na literatura internacional, tanto em termos de sua incidência, fatores de risco e protetivos, bem como há intervenções que seriam efetivas para lidar com esse problema. No Brasil, alguns dados indicam que 13% dos alunos de anos finais do ensino fundamental sofriam bullying, 10% eram perpetradores de bullying e 4% eram vítimas e perpetradores. Fatores como histórico de negligência e violência doméstica são fatores de risco associado à prática e à vitimização por bullying (Conceição, 2020).
Aqui no Brasil, embora haja iniciativas e programas que buscam lidar com a prevenção e combate ao bullying, são muito escassas as evidências de intervenções que efetivamente funcionam. Nesse sentido, o LEPES (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social) vem, desde 2018, ajudando na estruturação do Programa Eu Posso te Ouvir (EPTO). Originalmente concebido em uma escola de anos finais do Ensino Fundamental de Sobral, desde 2019 está sendo realizada a estruturação do programa para que pudesse ser replicado em outras escolas. Em 2022 está sendo realizada a avaliação de implementação do EPTO em 11 escolas de 5 municípios brasileiros (Barretos/SP, Ocará/CE, Baturité/CE, Sobral/CE, Timon/MA). Em todos os casos, o foco é nos anos finais do Ensino Fundamental, etapa de ensino na qual problemas como bullying começam a se verificar no ambiente escolar.
O EPTO consiste em uma estratégia de atuação intersetorial, que, embora centrada na escola, envolve a participação ativa dos profissionais da saúde e assistência social. A complexidade dos problemas com os quais as escolas se defrontam a partir dos anos finais do ensino fundamental (bullying, violência física, racismo, homofobia etc.) exige tal atuação. Basicamente, o primeiro passo é a constituição de uma equipe intersetorial que vai atuar em uma escola. Essa equipe passa por formação em escuta ativa, competências socioemocionais e matriciamento (técnica muito utilizada na Saúde, em que, de modo compartilhado, são discutidos casos e criadas propostas de intervenção individualizadas).
Após essa formação, a equipe desenvolve um plano de ação intersetorial, no qual são definidas as ações a serem desenvolvidas na escola, adaptadas ao contexto e às necessidades daquela comunidade escolar específica. Assim, se há um diagnóstico de bullying, a equipe vai discutir e desenvolver atividades para lidar com essa questão. O EPTO também permite um acompanhamento individualizado dos estudantes e também objetiva tornar a escola um espaço em que os jovens se sintam acolhidos, respeitados e ouvidos em suas dúvidas, ansiedades, problemas.
Um ponto importante é que às vezes preferimos soluções que são um “pacote fechado”. Elas podem ser mais fáceis de serem implantadas a princípio, mas provavelmente não vão fazer tanto sentido em realidades distintas. Como as escolas brasileiras são muito heterogêneas entre si, faz mais sentido o desenvolvimento de uma estratégia que tenha princípios gerais bem definidos, mas que permita adaptação aos diferentes contextos. Provavelmente, a chance de ela ser mais bem-sucedida aumenta.
Com os resultados da avaliação de implementação em curso durante 2022, o EPTO já está sendo aperfeiçoado. O plano é expandir a intervenção para mais de 70 escolas em 2023. Sendo bem-sucedida essa expansão, a partir de 2024 será realizada uma avaliação de impacto de larga escala, para verificar se efetivamente o EPTO causa a redução de diversos problemas no ambiente escolar, inclusive o bullying.
Desse modo, se passar por todas estas etapas com sucesso, teremos à disposição dos gestores públicos uma intervenção que pode prevenir muitos dos problemas que hoje afetam boa parte da juventude brasileira. Quem sabe, até lá, a questão da violência no ambiente escolar e do bullying deixem de ser lembradas apenas por ocasião do próximo tiroteio dentro de uma escola e seja realmente uma prioridade da sociedade brasileira?