Baseado em dados: como diferenciar usuários e traficantes de drogas? Uma defesa da adoção de critérios objetivos de quantidade
A perspectiva de descriminalização do porte de drogas para uso próprio acentua a urgência e oportunidade para enfrentamento da questão dos critérios de diferenciação entre usuários e traficantes
Leonardo de Carvalho
Pesquisador Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, doutor em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Milena Soares
Técnica de desenvolvimento e administração do Ipea, mestre em Políticas Públicas pela Australian National University
No dia 6 de março de 2024, o Supremo Tribunal Federal retomou a votação do Recurso Especial 635659, proposto pela Defensoria Pública de São Paulo, que discute se a criminalização do porte de drogas para consumo próprio é constitucional. O julgamento, iniciado em 2015, foi adiado diversas vezes por conta de pedidos de vista. Levando em conta o conteúdo dos votos proferidos até aqui, tem prevalecido o entendimento de que a decisão deverá restringir-se exclusivamente ao porte de maconha para uso pessoal. Até o momento em que este texto foi escrito, há um placar de cinco votos pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio e três votos para manter como crime a posse de maconha para uso pessoal.
A questão central do presente texto é a definição de critérios objetivos para diferenciar o porte para uso do porte para tráfico de drogas. A lei de drogas não apresenta uma definição objetiva para essa tipificação, na medida em que prevê, no segundo parágrafo do Artigo 28, que “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
A literatura sobre o tema tem apontado que a não identificação de critérios objetivos desqualifica a aplicação da lei de drogas, na medida em que reforça alguns vieses do sistema de justiça, desde a fase policial até o cumprimento da sentença. Em outras palavras, a tipificação do tráfico guardaria, segundo os dados, relação com o perfil social, econômico e racial da pessoa e do local onde ocorreu o flagrante.
Um panorama de inédita abrangência nacional sobre como o crime de tráfico de drogas é processado pelo Sistema de Justiça e do perfil dos réus pode ser encontrado na recente pesquisa lançada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério de Justiça e Segurança Pública (SENAD/MJSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). O levantamento analisou processos que tiveram decisão terminativa no primeiro semestre de 2019, dentro de um universo que abrange, inclusive, inquéritos iniciados há mais de uma década[1]. Nos TRFs, foram analisados 253 processos, o censo do universo de interesse. Nos Tribunais de Justiça Estaduais, foram analisados 5.121 processos, amostra representativa para o universo de 41.100 processos existentes.
Entre as centenas de variáveis levantadas na pesquisa, as quantidades de drogas apreendidas apontam, em primeiro lugar, uma diferença entre as massas medianas no universo dos processos julgados nos TRFs e nos nos TJs: 14,5 kg de cannabis e 6,6 kg de cocaína no âmbito federal, enquanto no âmbito estadual essa quantidade foi de 85 g de cannabis e 24 g de cocaína. Trata-se, claro, de flagrantes em contextos muito diferentes, já que a Justiça Federal conduz grande parte dos processos de grandes apreensões realizadas em estradas, portos e aeroportos. Não obstante, é relevante considerar a pequena quantidade de drogas apreendidas no âmbito dos processos na justiça estadual.
Nos votos já apresentados pelos ministros, houve prescrição de diferentes limites para a definição de porte para uso e porte para tráfico de maconha, ainda que os ministros tenham divergido a respeito do peso da quantidade apreendida na tipificação da conduta.
No relatório de pesquisa do Ipea, intitulado “Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum”, apresentam-se diversas estimativas de cenários de aplicação de parâmetros objetivos de quantidade sobre o universo de réus processados por tráfico.
As estimativas se baseiam em quantidades compatíveis com padrões de uso, referenciadas por especialistas do Instituto Igarapé. No caso de cannabis, o Instituto Igarapé indica que o porte de 25 gramas a 100 gramas poderia ter presunção relativa de destinação para consumo próprio. Em relação à cocaína, a quantidade de referência estaria entre 10 gramas e 15 gramas.
Nesse sentido, o estudo do Ipea estimou o percentual de réus que portavam quantidades compatíveis com tais padrões de uso, e, em decorrência, poderiam ter presunção de porte para uso próprio. Os achados apontam que 5% dos réus processados portavam apenas cannabis (sem outras drogas) em quantidade igual ou inferior ao limite de 25 gramas. Para o limite de 100 gramas, esse percentual seria de 11% de todos os réus processados.
Estimou-se ainda que cerca de 8,9% de todos os réus processados por tráfico de drogas portavam apenas cannabis, em quantidade igual ou inferior a 60 gramas, limite que foi aventado nos votos dos ministros do STF.
O impacto poderia ser maior caso houvesse definição de parâmetros para outras drogas. Em verdade, os dados indicam que usuários de cocaína estão mais sujeitos a serem processados como traficantes, comparativamente aos usuários de cannabis, tendo em vista que 10% de todos os réus processados por tráfico de drogas portavam apenas cocaína, no limite de até 10 gramas – um parâmetro considerado conservador.
Outro ponto relevante é o perfil dos/as réus/rés mapeado pela pesquisa: os processos por tráfico de drogas nos tribunais estaduais tratam majoritariamente de homens, jovens negros, com pouca escolaridade e com passagem anterior pelo sistema de justiça e segurança pública por conta de tráfico de drogas. Esses homens, em sua maior parte, foram presos em flagrante por policiais militares em vias públicas, parques ou praças, em abordagens motivadas em sua maioria por denúncia anônima ou com base em comportamento suspeito. Ainda no âmbito estadual, 84% dos flagrantes do processo não tiveram investigação pretérita, revelando que a aplicação da lei de drogas é muito calcada em policiamento ostensivo.
A grande maioria dessas pessoas (92%) ficou presa em decorrência dos crimes pelos quais são acusados, no período entre a data do flagrante e a data da sentença, dado importante para entender o peso do tráfico de drogas na alta proporção de prisões temporárias ou provisórias no Brasil. Nesse ponto, é importante considerar, ainda, que em quase 80% dos processos analisados na pesquisa houve condenação por pelo menos um crime e que, nos casos de absolvição, o principal fundamento dado pelo/a juiz/a foi a insuficiência de provas. Nos casos de condenação por ao menos um dos crimes da denúncia, 97% tiveram aplicação de pena privativa de liberdade.
A perspectiva de descriminalização do porte de drogas para uso próprio acentua a urgência e oportunidade para enfrentamento da questão dos critérios de diferenciação entre usuários e traficantes. Entretanto, cabe destacar que essa questão existe e deve ser enfrentada, independentemente do entendimento sobre a (in)constitucionalidade. Espera-se que a adoção de critérios objetivos de quantidade para presunção de porte para uso possa contribuir para reafirmar o princípio de presunção da inocência das pessoas processadas e para desafogar o sistema de justiça criminal.
[1] Disponível em: Microsoft Power BI