Múltiplas Vozes 03/03/2023

Atenção às vítimas de violência sexual: semelhanças e diferenças nos casos Daniel Alves e André Aranha

É importante para a criação de uma clima de segurança para todas as mulheres, em que haja a consciência de que as instituições vão apoiá-las e respaldá-las quando decidem fazer uma denúncia de abuso

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Ariadne Natal

Pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)

Debora Piccirillo

Mestranda em sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudo da Violência da USP

O caso de estupro envolvendo o jogador de futebol Daniel Alves em uma casa noturna em Barcelona coloca em discussão a recorrência da brutalidade enfrentada por mulheres sexualmente agredidas em espaços de lazer e  divertimento. Tal caso tem contornos similares a outras situações análogas, como o episódio ocorrido em Florianópolis em 2018 envolvendo o empresário André Aranha.  Entretanto, em Barcelona, observamos uma importante e positiva inflexão, principalmente no que diz respeito à atenção à vítima por parte de agentes públicos e privados. Por esta razão, nos parece oportuno retomar os dois casos, apontar suas semelhanças, diferenças e ponderar aprendizados em defesa da segurança das mulheres.

Em dezembro de 2018, durante um evento no beach club Café de la Musique, em Florianópolis, Mariana Ferrer foi dopada, conduzida por André Aranha a um espaço privativo dentro da boate e estuprada. Em dezembro de 2022, na boate Sutton em Barcelona, Daniel Alves teria estuprado uma jovem de 23 anos no banheiro privativo de um camarote. Em ambos os casos os agressores inicialmente negaram terem se relacionado com as jovens e, posteriormente, mudaram suas versões, alegando que agiram de maneira consentida e sem penetração. Nos dois episódios, as perícias e vestígios contradizem tal narrativa e corroboram o depoimento das vítimas. 

Embora os agressores tenham comportamentos similares, os desdobramentos dos casos são distintos quando outros atores entram em cena. No Brasil, a boate tentou se distanciar do caso, sem colaborar com a vítima ou investigações, alegando não ser parte do processo. Já a polícia foi notificada no dia seguinte pela vítima e só visitou o estabelecimento quatro dias depois. O caso foi registrado como estupro de vulnerável em uma delegacia comum e posteriormente transferido para a delegacia especializada e o inquérito levou mais de seis meses para ser concluído.

Já no episódio ocorrido na Espanha, foram os funcionários da boate que detectaram algo errado ao verem a jovem chorando e levaram-na a um lugar seguro onde foi ouvida e aconselhada a realizar denúncia. Com sua anuência, a polícia foi acionada e conduziu a moça ao hospital onde foi socorrida, examinada, forneceu evidências, e recebeu auxílio jurídico e psicológico. Em paralelo, a Unidade Contra Crimes Sexuais visitou a boate, recolheu amostras, depoimentos e imagens de câmeras de segurança. Esse procedimento célere foi possível porque a boate é signatária do protocolo “No callamos”, uma política contra agressões e abusos sexuais desenvolvida naquela província em 2018 em parceria com casas noturnas. O protocolo prevê uma postura ativa dos estabelecimentos de lazer para realizar o que chamam de primeira atenção, treinando funcionários para identificar e agir tanto em situações potencialmente perigosas, quanto diante de ocorrências deliberadas de violência sexual. 

No caso André Aranha, inicialmente o empresário foi denunciado por estupro de vulnerável e teve sua prisão preventiva pedida, mas tal determinação foi derrubada em segunda instância. Posteriormente o Ministério Público mudou de tese e passou a entender que não houve dolo na ação, alegando que o agressor desconhecia o estado de consciência da vítima. Apesar da compatibilidade de material genético, das imagens das câmeras de vigilância e da palavra da vítima, André Aranha foi absolvido por falta de provas em 2021. Entretanto, o tratamento desrespeitoso dado à vítima pelas autoridades durante a audiência de instrução causou comoção pública e levou à criação da Lei 14.245/2021, que garante o cuidado pela integridade física e psicológica da vítima e testemunhas e proíbe qualquer tipo de constrangimento.

Já no episódio catalão o sistema de justiça agiu de maneira célere, determinando a prisão preventiva do jogador, ao mesmo tempo em que preserva a identidade da vítima evitando sua revitimização. Neste caso, a Federação Catalã de Associações de Atividades Recreativas e Musicais (Fecasarm) requisitou ser parte da acusação como forma de garantir uma punição exemplar e melhorar a imagem do setor,  reforçando o compromisso de oferecer respaldo e segurança para as mulheres.

A comparação entre os dois episódios evidencia discrepâncias no tratamento das vítimas e na condução dos casos por parte das instituições, o que influencia seu desfecho e a possibilidade de responsabilização dos agressores. No caso brasileiro coube à vítima à busca por justiça enquanto foi desacreditada, julgada e exposta; no caso espanhol a vítima foi acolhida, ouvida e respaldada pela ação coordenada de entes privados e públicos na busca por esclarecimento e justiça. Um fator decisivo para tal diferença é a existência de políticas públicas voltadas para a proteção e atendimento às vítimas, em parceria com os estabelecimentos de lazer. Não à toa diversos entes estatais brasileiros agora demonstraram interesse em criar políticas similares por aqui. 

A maneira como os funcionários e as autoridades públicas tratam vítimas de crimes sexuais é fundamental para garantir uma investigação adequada, justa e célere. Mas também é importante para a criação de uma clima de segurança para todas as mulheres, em que haja a consciência de que as instituições vão apoiá-las e respaldá-las quando decidem fazer uma denúncia de abuso.

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