Atenção à saúde mental dos policiais do Brasil: por políticas públicas que não só recomendem, mas exijam e fiscalizem
Corporações conservadoras, que insistem em pintar os policiais como “guerreiros casca-grossa”, não se dedicaram a construir políticas duradouras, padronizadas e bem amparadas financeiramente para a saúde de uma categoria que sucumbe
Fernanda Bassani
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), lotada na Divisão de Saúde da Polícia Civil do Rio Grande do Sul
Para Freud[1] (1974), a violência é a antítese da civilização, ela eclode quando já não respeitamos mais o limite, representado em nosso Inconsciente pela função paterna[2]. Simbolicamente, o limite pode tomar muitas formas: ele é a lei penal, o código de trânsito, a convenção do condomínio, o olhar de reprovação de um dos pais ou do chefe ou, então, aquele assunto tabu e inviolável. Na prática, quando a civilização perece, há um personagem que é chamado para relembrar o limite e torná-lo uma barreira intransponível: o policial. Mas e quando aquele que deveria representar o limite (para salvar a civilização) resolve atirar em si próprio? Que sintomas e sinais ele está emitindo sobre o coletivo ao qual pertence?
Trata-se de questões aparentemente apocalípticas, mas que deveriam balizar a construção de um novo e urgente olhar em saúde para os trabalhadores das instituições policiais. É no interior dessas corporações que está o grupo social que mais comete suicídios em nosso país. Em 2022, enquanto foram registradas oito mortes autoinfligidas por 100 mil habitantes, os policiais protagonizaram 20 suicídios por 100 mil habitantes, isto é, quase três vezes mais que a população em geral (ABSP, 2023).
Embora meios de comunicação já abordem o tema do suicídio policial há algum tempo, o ano de 2023 tem os requisitos para se transformar em um marco. Pela primeira vez os tiros saídos das próprias armas mataram mais policiais (118 suicídios) do que os projéteis disparados por criminosos nas folgas (73 mortos) ou em confrontos durante o trabalho (54 policiais). Em suma, um aumento de 26,2% na taxa de suicídio, em relação a um decréscimo de 18,1% nas mortes por confronto (ABSP, 2024).
A decisão de tirar a própria vida não é um ato isolado, mas o apogeu de um processo de adoecimento mental que emite sinais. Transtornos de Ansiedade, Depressão, Burnout, Transtorno de Estresse Pós Traumático/TEPT e Dependência Química (LAMEGO, BASSANI, 2022) associam-se a dificuldades em elaborar aspectos da “cultura policial” (REINER, 2004, MONDJARDET, 2002) como assédio moral e sexual, rígida hierarquia e influências políticas, gerando um cenário que sugere uma “epidemia de sofrimento psíquico nas polícias”. Epidemia não mensurada ou tratada, mas que grita alto quando a arma do policial é direcionada para si e um novo corpo tomba.
Atualmente as corporações policiais não dispõem de legislações que exijam recursos humanos para o atendimento em saúde, mesmo sabendo do “alto nível de estresse a que estão submetidas pela própria natureza do trabalho” (Bureau of Justice, EUA, 2022). Já no âmbito prisional, a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7210/1984) obriga a criação de Comissões Técnicas de Classificação, com psicólogo e assistente social para avaliação das condições psicossociais da pessoa presa e acompanhamento (art. 5º, 6º e 7º). Tal fato levou à criação de concursos e a um quadro considerável de técnicos.
No âmbito das polícias – tendo por foco o trabalhador da segurança – os serviços em saúde partem de iniciativas estaduais esparsas e instáveis, gerando um cenário muito variado. Espírito Santo e Santa Catarina dispõem do quadro de Psicólogo Policial nas Polícias Civis, outros Estados apenas terceirizam o atendimento, como é o caso da Polícia Militar do Distrito Federal que, com efetivo de 10 mil PMs, possui apenas um assistente social lotado e nenhum psicólogo na instituição para cuidar da problemática mental de servidores que, sabe-se, exige um conhecimento institucional, além de psicológico.
Até o ano de 2018, o tema da saúde mental de policiais não tinha sido objeto de legislação nacional. Neste ano, a Lei nº 13.675, que institui o Sistema Único de Segurança Pública (Lei do SUSP) previu a criação do Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (PRÓ-VIDA), com o objetivo de:
Art. 42 […] elaborar, implementar, apoiar, monitorar e avaliar […] programas de atenção psicossocial e de saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social, bem como a integração sistêmica das unidades de saúde dos órgãos que compõem o Susp.
De 2018 até 2024 pouco se viu de ações executivas para viabilizar os programas de atenção em saúde previstos, seja com capacitação, recursos, programas de padronização ou fiscalização. Novas leis surgiram, como a de nº 14.531 de 2023, focada na “prevenção dos suicídios e na política de promoção dos direitos humanos dos profissionais de segurança pública e defesa social”. Também em 2023 foi publicada a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC, Lei nº14.375/2-23) que, apesar de recomendar a criação de “unidades de assistência psicológica, psiquiátrica e terapêutica nas polícias”, não especifica como fazer nem define orçamentos. Para Rocha (2023), a segurança pública convive com “legislações álibis” que não obrigam a nada, nem fiscalizam ou definem recursos, em vez de se espelhar em experiências sólidas como as que criaram o Sistema Único de Saúde (SUS, Lei nº 8.080 de 1990).
Além disso, o campo parece não se empenhar em uma coalização com órgãos de classe de psicologia, assistência social, universidades e corporações internacionais, em um esforço para implementar e avaliar projetos de saúde mental das polícias do Brasil. A invisibilização do tema pode ser percebida junto ao Conselho Federal de Psicologia, que somente no ano de 2020 publicou um caderno, de viés genérico, intitulado “Referências Técnicas para atuação de psicólogos nas políticas de segurança pública” (CFP, 2020). No entanto, a especialidade “psicólogo policial” não consta na Resolução nº 3 do CFP (16/03/2022) que reconhece treze especialidades possíveis aos psicólogos do Brasil. Já nos Estados Unidos, a American Psychological Association reconheceu em 2013 a especialidade de “Psicologia Policial”[3]
O novo campo de saúde que emerge dentro do complexo campo da segurança pública é o sintoma de uma doença que acomete toda a sociedade. Desgovernados, individualistas e explosivos, estamos sobrecarregando nossos guardiões. De outro lado, corporações conservadoras, que insistem em pintar os policiais como “guerreiros casca-grossa”, não se dedicaram a construir políticas duradouras, padronizadas e bem amparadas financeiramente para a saúde de uma categoria que sucumbe.
Um passo importante talvez fosse a realização de um levantamento nacional de todos os serviços e recursos atualmente ofertados nas Polícias para o atendimento em saúde mental (quantidade/tipo de profissionais/programas), seguido da criação de um Núcleo de Trabalho junto ao Conselho Federal de Psicologia para a construção de conhecimento e normativas para o novo campo, como, por exemplo, um cálculo do número adequado de psicólogos a ser ofertado em relação ao efetivo de cada polícia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo: FBSP, v.16, ano 17, 2023.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo: FBSP, v.17, ano 18, 2024.
FREUD, S. (1974e). O mal-estar na civilização.(Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1930).
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. “Referências Técnicas para atuação de psicólogos nas políticas de segurança pública”. CREPOP. 1ª Edição .
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Resolução nº 3 do CFP (16/03/2022)