As violências contra crianças e adolescentes no Brasil
Nesta edição, iniciamos a publicação de textos selecionados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública em versão condensada. Os textos integrais estão disponíveis no site do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Betina Warmling Barros
Doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo e pesquisadora no Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Sofia Reinach
Pesquisadora associada do FBSP e Gerente sênior de programas de prevenção e enfrentamento a violências da Vital Strategies Brazil.
São múltiplas as formas de manifestação da violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Sabe-se, por exemplo, que crianças de até 13 anos representam, em média, 60% das vítimas de estupros registrados. Além disso, apenas entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no país. Esses são apenas alguns dos números já produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública que ajudam na ingrata busca por descrever com maior precisão e profundidade quais são, de que forma ocorrem e quem atingem as modalidades de violência contra crianças e adolescentes no Brasil.
Seguindo esse objetivo, em dezembro de 2021, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentou um primeiro estudo a respeito do cenário da violência entre crianças e adolescentes entre 2019 e primeiro semestre de 2021, quando os registros de ocorrência de um conjunto de crimes foram analisados em 12 Unidades Federativas. Buscando aprofundar as análises que começaram a ser traçadas naquele momento, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 continua o monitoramento desse conjunto de crimes, em esforço inédito para produzir um levantamento a respeito da violência de crianças e adolescentes, dessa vez com dados nacionais (27 UFs) para os anos de 2020 e 2021, além de estender a análise dos registros de tipos penais que ainda não haviam sido objeto do estudo.
O recorte de faixa etária utilizado nas análises que serão apresentadas é o de 0 a 4 anos, 5 a 9 anos, 10 a 14 anos, 15 a 17 anos e 18 a 19 anos. Contudo, para facilitar a avaliação mais geral do comportamento dos crimes entre crianças e adolescentes, também serão apresentados os dados consolidados para o total de vítimas de 0 a 17 anos.
Na publicação completa do Anuário, é possível acessar a análise na íntegra sobre todos os crimes contra crianças e adolescentes analisados, sejam letais ou não letais. Neste texto, serão abordados com mais profundidade os crimes de abandono de incapaz, prostituição e exploração sexual contra crianças e adolescentes.
ABANDONO DE INCAPAZ
O abandono de incapaz possui uma capitulação ampla, podendo ser utilizado na tipificação de uma série de situações, o que talvez explique sua maior incidência na comparação com outros crimes. Talvez o caso de abandono de incapaz que tenha ganhado maior projeção nacional na história recente seja a morte do menino Miguel após cair de um prédio de luxo em Recife, em junho de 2020, quando tinha apenas cinco anos. Dois dias antes da morte do menino completar dois anos, Sari Corte-Real foi condenada a oito anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz com resultado morte pelo óbito de Miguel.
O caso da patroa, mulher branca, que deixou sem vigilância o filho da sua empregada doméstica, mulher negra, enquanto ele descia o elevador – o que acabou resultando na queda do menino do alto do prédio – é uma situação extrema em relação ao comumente registrado com base nesse tipo penal. Ainda assim, ajuda a exemplificar um cenário de desamparo que atinge milhares de crianças e adolescentes no País. Em 2020, foram 7.145 registros de abandono de incapaz com vítimas de 0 a 17 anos no país. Esse número saltou para 7.908 em 2021, o que significou um crescimento de 11,1% nas taxas por 100 mil pessoas com essa faixa etária, saltando de 13,4 para 14,9. A análise dos registros por idade indica que as maiores taxas estão nas faixas entre 5 e 9 anos, que passaram de 17,4 em 2020 para 19,6 em 2021, um aumento de 12,5%.
Ou seja, as principais vítimas são aqueles nem tão jovens (0-4) sobre os quais há um maior controle e vigilância, e nem mais velhas (10-17), que possuem mais condições de se defender dos riscos decorrentes do abandono. Vale lembrar que, como estamos tratando com os registros, é possível que em relação às crianças mais velhas exista uma concepção mais alargada sobre a ideia de abandono, o que diminua a notificação de situações que, mesmo que possam ser tecnicamente tidas como abandono, deixam de ser reportadas à autoridade policial.
Apesar disso, o crescimento observado entre 2020 e 2021 se deu em todas as faixas etárias. É possível supor que essa alta tenha se dado com a retomada dos registros após o período de subnotificações observado em 2020, em razão das medidas de isolamento social decorrentes da pandemia de Covid-19. Também seria possível supor que o crescimento decorre da piora nas condições socioeconômicas no último ano, como o aumento dos índices de pobreza, o que pode ter resultado em uma maior quantidade de mães e pais que não possuem as condições mínimas para garantir a proteção e cuidado de seus filhos.
Conforme já se adiantou, o cenário estadual dos registros de crimes varia muito e pode ser resultado de uma série de fatores. Isso fica claro quando observamos que as taxas de abandono de incapaz com vítimas entre 0 e 17 anos nos estados variam de 50,9 (Mato Grosso) a 1,9 (Ceará). Chama atenção ainda que, de todas as UF’s, apenas 7 apresentaram decréscimo na taxa entre 2020 e 2021.
PORNOGRAFIA E EXPLORAÇÃO SEXUAL
Para além dos crimes de estupro, que são monitorados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública com desagregação dos dados por idade há algum tempo, nesta seção inédita também foram produzidos índices sobre os registros de crimes de pornografia e exploração sexual.
Os crimes de pornografia infanto-juvenil normatizados no Estatuto da Criança e do Adolescente foram criados pela Lei 11.829/2008, implementada como forma de “aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet”. Assim, além das alterações dos arts. 240 e 214, acrescentaram-se os tipos penais dos arts. 241-A, 241-B, 241-C e 241-D. No art. 241-E definiu-se que, para efeito dos crimes, a expressão “’cena de sexo explícito ou pornográfica’ compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”
Assim, para esse primeiro levantamento a respeito da pornografia, foram solicitados os registros criminais referentes aos art. 240, 241, 241-A e 241-B do ECA, ou aqueles classificados como crimes de Pornografia infanto-juvenil. Em síntese, estão contidos nesses delitos os atos que envolvem a produção, venda, transmissão, distribuição ou aquisição da cena pornográfica. Apesar da enorme quantidade de ações criminalizadas pelos tipos penais, surpreende a baixa incidência de registros. Foram 1.767 vítimas de 0 a 17 anos em 2020 e 1.797 em 2021, o que significa um aumento de 2,1% na taxa de crimes.
Em relação ao cenário dos estados, o Mato Grosso do Sul aparece novamente com taxa bem acima da média nacional, em relação ao conjunto de vítimas crianças e adolescentes, com valor de 16,4 registros/100mil habitantes. O Distrito Federal (10,0) e Rondônia (11,4) também apresentaram índice elevado.
A análise dos registros por faixa etária demonstra a maior prevalência de vítimas a partir dos 10 anos. Assim, do total dos casos com vítimas entre 0 e 17 anos, em torno de 55% estão na faixa entre 10 e 14 anos e 29%, entre 15 e 17. Somando os registros de vítimas entre 15 e 19 anos, chega-se a um total de 614 casos em 2021, valor mais baixo se comparado com a faixa dos 10 a 14 anos (990 casos). Os pré-adolescentes parecem ser, portanto, vítimas preferencias nesses tipos de crimes.
Deve se ter em mente que a pornografia é por natureza um delito cibernético que também pode ser investigado pela Polícia Federal. Lembra-se que o art. 144, § 1º, I, da CF, dispõe que cabe ao órgão apurar infrações “cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional”. Assim, é preciso considerar que os delitos de pornografia registrados por parte da Polícia Federal em razão de investigações realizadas pelo órgão não estão contabilizados nesses números.
É o mesmo caso da exploração sexual infantil, espécie de crime que não raramente ocorre em rodovias federais, impondo a competência da Polícia Rodoviária Federal para investigação e combate do delito. Conforme aponta o estudo MAPEAR: Mapeamento dos Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras (2019/2020), entre 2019 e 2020 foram identificados 3.651 pontos vulneráveis à exploração sexual, o que significou um aumento de 47% em relação ao total identificado no biênio anterior.
Por exploração sexual entende-se toda forma de comércio do próprio corpo, com satisfação do desejo de terceiro. A prostituição é uma das espécies da exploração. Sendo a vítima menor de idade, não importa que ela afirme que está se prostituindo por vontade própria, pois se entende que a sua vulnerabilidade da sua condição de sujeito em desenvolvimento justifica a criminalização do ato, independente do seu suposto desejo. Os autores do crime podem ser o aliciador, o proprietário do local onde a exploração ocorre, o “cliente” ou quem mais esteja explorando sexualmente a vítima como, por exemplo, mães e pais que entreguem seus filhos para turismo sexual.
Segundo o levantamento realizado para esse Anuário, em 2020 foram 683 vítimas de 0 a 17 anos, número que cresceu para 733 em 2021, um aumento de 7,8% na taxa por 100 mil habitantes que passou de 1,3 para 1,4. Na análise dos dados estaduais, chama-se atenção as altas taxas para 2021 nos estados do Mato Grosso do Sul (8,5) e do Mato Grosso (5,4), valores bem acima dos demais estados que apresentaram, em média, taxas entre a 0 e 2,9 registros de vítimas entre 0 e 17 anos por 100 mil habitantes.
Conforme se observa, trata-se de um tipo de crime pouco investigado no Brasil, sendo aquele com menor número de registros absolutos de todos os delitos analisados nesta seção. Reitera-se que esse resultado indica mais um esforço institucional insuficiente por parte das polícias em investigar e combater esse tipo de delito do que necessariamente uma baixa ocorrência dos fatos criminosos na realidade social. O próprio relatório da PRF que indica mais de 3.651 pontos vulneráveis nas rodovias federais já é um forte de indício de que se está diante de um elevado nível de subnotificação do crime.
Em suma, o que os dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes demonstram é que o Estado brasileiro não consegue dar conta de proteger suas crianças e adolescentes contra a violência sexual. Se os registros apontam uma maior prevalência de meninas vítimas nesses casos, sabe-se que os tabus e o preconceito que envolvem a violência sexual contra homens são responsáveis por níveis de subnotificação ainda maiores no caso de vítimas do sexo masculino, principalmente adolescentes e jovens. Por essa razão, iniciativas como a promovida pelo Instituto Liberta que lançou a campanha #AgoraVcSabe são extremamente necessárias para que se rompa com uma cultura do silêncio e da vergonha, que acaba culpabilizando ainda mais a vítima, individualizando um problema que é social e retirando do Estado – incluso as autoridades policiais – o dever de tornar esse um problema prioritário para o poder público.
O que o quadro geral de crimes apresentado indica é que as crianças e adolescentes brasileiros são cotidianamente vitimizados em uma série de contextos, muitas vezes de maneira continuada e em silêncio. São abusos de todas as ordens, desde o abandono, o vexame e a humilhação, a violência física dentro do ambiente doméstico, os abusos sexuais – que vão desde a pornografia até o estupro e a exploração sexual – culminando, infelizmente, em casos inconcebíveis de assassinatos de crianças e adolescentes. Esse cenário se tornou ainda mais complexo em meio à pandemia de Covid-19 e às medidas de isolamento que retiraram de muitas crianças o acesso a canais essenciais de proteção, como a escola e os ambientes de convivência social. Vislumbrar um futuro mais seguro para essa geração não é uma tarefa fácil, mas que certamente passa por um melhor diagnóstico dos registros criminais e da atuação dos atores da segurança pública nesses casos, sobretudo de forma preventiva.