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As perambulações da Cracolândia

As primeiras apreensões de crack na região central de São Paulo ocorreram no início dos anos 90 e a situação na região quase não foi alterada desde então. Nesse sentido, as mudanças do fluxo de usuários ao longo desse tempo não representaram uma grande vitória da “lei e da ordem" tampouco uma derrota

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Semana passada a imprensa noticiou que parte da Cracolândia tinha se deslocado para a praça Princesa Isabel, alguns quarteirões distante de onde se concentravam os usuários de crack nos últimos anos. Não foi a primeira e nem será a última vez que isso ocorre. Periodicamente o conjunto de usuários e traficantes se move algumas centenas de metros, mas sempre se mantendo nas proximidades. E toda vez que isso ocorre o estado não se preparou antes para a eventualidade e é pego de surpresa.

O primeiro local que ficou conhecido como Cracolândia ficava bem no centro da antiga Boca do Lixo, local que nos anos 50 e 60 abrigava a baixa prostituição e os mais conhecidos criminosos paulistas. Nesse pequeno espaço degradado, próximo à Estação da Luz, surgiram figuras conhecidas pelos leitores dos jornais sensacionalistas da época. Os dois mais famosos foram Joaquim Pereira da Costa, o “Quinzinho”, e Hiroito de Moraes Joanides. Ambos foram principalmente traficantes e cafetões, e disputaram por anos o título de Rei da Boca, que acabou nas mãos de Hiroito, que morreu depois do rival. Além disso, foi o personagem principal de um filme com esse nome.

Foi nesse espaço que, nos anos 90, foram apreendidas as primeiras pedras de crack em São Paulo. Segundo antigos tiras (investigadores de polícia), a notícia da apreensão fez com que aparecessem os primeiros curiosos, que queriam experimentar a nova (pelo menos no Brasil) droga. E aos poucos a região foi se firmando como o principal ponto de venda, e cada vez atraía mais usuários. Vagarosamente, uma população de usuários foi ficando por ali, onde o acesso ao crack era mais fácil. Primeiro, quando ainda tinham dinheiro, se hospedando em pensões e cortiços. Depois, conforme iam se descapitalizando, virando moradores de rua. Aos poucos foram criando uma legião de zumbis, que vivem de e para o crack.

Conhecidos por “nóias”, eles circulam por todo o centro paulistano, mas o maior e mais visível aglomerado continua localizado na mesma região. Moram nas ruas e imóveis abandonados, e vivem de mendicância, pequenos furtos e às custas de inúmeras instituições que prestam auxílio aos moradores de rua. E no meio deles circulam inúmeros micro ou pequenos traficantes, invisíveis na multidão.

No final dos anos 90, escrevi, com a antropóloga Sandra Goulart, um artigo sobre esse fenômeno. Ele se originou de uma pesquisa de campo no local, a pedido da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Nossa equipe ficou várias semanas circulando todas as noites pela região, entrevistando usuários, donos de comércio local, trabalhadores, moradores, prostitutas, etc. E a observação determinou que o foco central desse aglomerado era uma pequena área de oito ou nove quarteirões, onde a maioria dos jovens usuários se concentravam, mais especificamente em dois cruzamentos, rua do Triunfo com Gusmões e Gusmões com a rua dos Protestantes.

Naquele espaço, a qualquer momento do dia se encontravam vários garotos com rosto de sonâmbulos sentados ou caminhando lentamente. E à noite eles estavam geralmente sentados junto ao meio fio, usando crack, meio abestados. Era uma época de transição, quando crianças e adolescentes que cheiravam cola estavam se habituando ao crack. Os traficantes, como agora, eram indistinguíveis dos usuários mais velhos. Mesmas roupas, rostos inexpressivos, olhar perdido, etc. Além do quê, muitos, segundo as informações obtidas nas entrevistas, usavam e vendiam para manter o vício.

Nos mais de 20 anos desde essa pesquisa, a situação se alterou muito. E o principal motivo foi a tomada pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) do tráfico de drogas nas ruas da cidade. O que era um tráfico meio artesanal, em que a transformação da pasta base de cocaína em pedras de crack era feita nas pequenas pensões locais, se transformou numa operação mais industrializada, com as pedras vindo principalmente da favela do Moinho, no centro de São Paulo, e de outros locais onde o Primeiro Comando tem o monopólio da comercialização.

Além do controle adquirido pelo PCC no comércio da droga, ocorreram outras mudanças na Cracolândia. A primeira é que o crack não é a única droga ilegal consumida ou comercializada. Na grande operação policial feita em 2017 já havia diferentes barracas, como as que existem nas feiras. Elas vendiam produtos distintos, entre os quais se destacavam os “pinos” de cocaína, vários tipos de maconha e mesmo entre as pedras de crack havia diferentes pontos de venda. Umas eram mais baratas, portanto, mais misturadas e fracas, outras um pouco mais fortes, e sempre havia possibilidade de escolha. Isso acabou ampliando a clientela, trazendo gente de fora, não necessariamente nóias.

Outra mudança foi nos usuários padrão. Continuam sendo, em sua maioria, pessoas pobres, normalmente moradores de rua, mas a faixa etária subiu. A porcentagem de crianças diminuiu muito. A terceira mudança é de endereço. Depois das primeiras grandes operações policiais, há 20 anos, houve uma série de migrações. Num primeiro momento, após uma ação policial, os usuários e traficantes são dispersados e passam a se aglomerar em pequenos grupos noutros locais do centro. A última concentração era na região da Estação Júlio Prestes, normalmente nas ruas Helvétia, Alameda Cleveland, etc. E o grande deslocamento foi de apenas alguns quarteirões, para a Praça Princesa Isabel.

A diferença desta das outras ocasiões é que a causa não foi uma ação específica da segurança pública. Nas outras vezes as polícias, especialmente a militar, obrigavam os usuários e traficantes a sair de onde estavam, na vã esperança de que se dispersassem de vez. Desta vez o motivo foi a contínua pressão policial, inclusive da Guarda Metropolitana, que fazia apreensões e prisão de pequenos e microtraficantes. Por conta disso, os mais graúdos resolveram que iam parar de vender lá. Os nóias foram informados disso e, mesmo que não tenha havido uma ordem específica para erguerem suas barracas na Praça, rumaram nessa direção e montaram acampamento, juntando-se a uns poucos moradores de rua que já estavam no local.

Ou seja, não foi uma grande vitória da “lei e da ordem”, mas também não foi uma derrota. O jogo permanece empatado. Simplesmente tudo continua como dantes. E enquanto isso o sistema de vigilância, feito pelas câmeras policiais e da prefeitura montadas no antigo endereço, ficou obsoleto. Daqui a um tempo as polícias vão montá-lo na nova Cracolândia e o jogo recomeça.

 

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