As milícias e a vitória de Cláudio Castro ao governo
A Polícia Militar do Rio de Janeiro se milicializou: uma milicialização institucional por dentro, sem risco para ninguém. Entende-se assim porque comandantes, coronéis, capitães, demais patentes e praças se transformaram na maior estrutura de cabos eleitorais jamais vista. Governo do estado, prefeitura e Corporação Militar irmanados pela institucionalidade miliciana
José Cláudio Souza Alves
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense
Quanto mais tempo uma milícia permanece em um lugar, mais forte e desapercebido se torna o seu poder. Ela, em si mesma, passa a conduzir as relações sociais, econômicas e políticas, estabelecendo normas e condutas. Os trabalhadores milicianos no chão da rua ganham seu salário e sustentam suas famílias, os indicados para empresas terceirizadas das prefeituras e governo do estado por vereadores e deputados milicianos alcançam estabilidade, os que compram terrenos e imóveis se livram do aluguel e alcançam um novo patamar na qualidade de vida, todos os usuários dos serviços milicianos usufruem do universo de consumo e garantias próprias desses mercados. Milícia, inclusive, é lazer. Espalham-se velozmente piscinas, clubes (inclusive os de tiro), além de campos e times de futebol cujos proprietários são milicianos ou gente ligada a eles. Há uma regulação da vida em todas as suas dimensões. Ser amigo de milicianos, mostrar seu vínculo com eles, solucionar conflitos a partir de suas mediações pavimenta sucesso e status. A partir daí, não há mais retorno. Não se precisa mais de caderno com número de título de eleitor, zona e seção eleitoral. O voto miliciano é inevitável, socialmente totalitário.
Cláudio Castro sempre soube disso. Sua fachada antimilícia, de prisões dos pés de chumbo mais frágeis e criação da figura do “narcomiliciano” para ser assassinado como bode expiatório forjou uma fantástica camuflagem de proteção para a expansão e consolidação miliciana, potencializada pela ação do secretário de milícia do Rio de Janeiro: Allan Turnowski, atualmente preso, e toda a cobertura midiática, sempre disposta a vender sangue e cenas de guerra, com muitas mortes – de pobres e pretos -, é claro. A isso se somou todo o dinheiro da privatização da Cedae. Às lágrimas escorridas das mães e familiares de vítimas dessa vasta estrutura de execuções sumárias somam-se os rios de dinheiro negociados com cada um dos 94 prefeitos do estado. O resultado foi a enxurrada eleitoral da vitória no primeiro turno. Grana e controle territorial miliciano comprovaram que juntos são imbatíveis. Ainda mais quando se tem como oposição uma “esquerda” rebaixada, desmentindo o que sempre defendeu, colocando capitães do Bope para formular propostas de segurança e abraçando banqueiros como grandes promotores de melhorias, ignorando, definitivamente, qualquer diálogo com os mais pobres.
O domínio de Cláudio Castro com as milícias é tão perfeito que lhe permite, inclusive, matar e executar milicianos para lhe render os louros e os votos. Foi o caso dos quatro jovens desaparecidos em Nova Iguaçu e a caçada promovida pela estrutura da segurança pública, que utilizou execuções sumárias e desaparecimentos forçados para combater execuções sumárias e desaparecimentos forçados. Que identificou cemitérios clandestinos que continuam cemitérios clandestinos, que esbanjou cenas cinematográficas de helicópteros, homens descendo de cordas e tiroteios aterrorizantes para salvar as pessoas do terror. É a morte como solução para a morte. Cláudio Castro é o rei dos mágicos bolsonaristas, transformando medo em ódio, assassinatos em segurança, chacinas em defesa da vida, terrorismo em paz, milicianismo em antimilicianismo. O senhor dos magos foi assim entronizado por uma mídia que bebe cada gota de sangue com seu vampirismo ávido por manchetes hipnotizantes, que transformam as vítimas naqueles que desejam sua auto-imolação. No desalento, sem ter a quem recorrer, votar no carrasco torna-se a única opção, uma sobrevida desejada frente à morte imediata.
Em Belford Roxo, cidade da Baixada Fluminense, com meio milhão de habitantes, o esquema ganhou contornos inimagináveis. Além da votação esmagadora de Castro, a esposa do prefeito, Daniela do Vaguinho, e o irmão do vice-prefeito, Márcio Canela, foram os mais votados do estado, respectivamente, para deputado federal e deputado estadual, cada um com mais da metade dos votos da cidade. Para se entender isso, é preciso se voltar no tempo, para janeiro de 2021, um ano e nove meses antes das eleições. Numa parceria entre o prefeito e Castro, foi instalado um destacamento do 39o Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral. A sequência de assassinatos de membros do Comando Vermelho, bem mais de 30, não só selou a pax miliciana às custas do sangue dos mais pobres, mas possibilitou um passo organizativo miliciano sem precedentes. Ao invés da milícia se instituir fora da corporação, a corporação, ela mesma, se milicializou, ou seja, uma milicialização institucional por dentro, sem risco para ninguém. Entende-se assim porque comandantes, coronéis, capitães, demais patentes e praças se transformaram, eles mesmos, na maior estrutura de cabos eleitorais jamais vista. Governo do estado, prefeitura e Corporação Militar irmanados pela institucionalidade miliciana. As votações comprovam. Com suas devidas conjunturas e proporções, cada município viveu seus esquemas de clientelismo, corrupção policial, controle territorial armado e curral eleitoral. Cada um com sua própria história e seus grupos políticos.
Tenta-se, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, reverter quadros que vem de anos, inclusive, com a ajuda da própria “esquerda” que, atônita, assiste ao avanço da extrema direita, atribuindo a evangélicos, milicianos e pobres enganados por fake news a culpa pela possível derrota. O Alzheimer político não permite compreender que as impressões digitais são deles mesmos, impressas por alianças políticas comprometedoras, políticas públicas de segurança que fortaleceram as dimensões da execução sumária e milicianas e a ausência do protagonismo dos mais pobres na construção das políticas de segurança.