Profissão Polícia

As lentas reformas na Segurança Pública no Brasil

As alterações até aqui, sejam por vias legislativas, por proposições orçamentárias do executivo, sejam por agentes do estado agindo individualmente ou por força política dos movimentos sociais são remendos em uma colcha de retalhos em uma cama velha

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em alguns países, insurgências populares por questões econômicas e políticas marcaram o fim do período de 2015 a 2020. Neste cenário, as forças armadas e policiais tiveram atuações discutíveis que serviram como mote para, além da ruptura de políticas partidárias e das políticas econômica, debater novos modelos e/ou agências de policiamento.

No Chile, por exemplo, as Revoltas de 2019 contestaram, entre outras pautas, a política econômica liberal no país. Em 18 de outubro, o Exército foi autorizado a atuar fundamentado na Lei de Segurança do Estado. A polícia ostensiva chilena também atuou. Segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile, há 3.072 denúncias de abusos policiais que não foram julgadas. Há denúncias de 30 mortos e 460 pessoas com mutilações oculares. O momento político de refundação constitucional também possibilitou o debate acerca de possíveis reformas nas agências policiais.

Segundo Paula Ballesteros, o governo chileno lançou em 2021 um projeto de reforma que prioriza o Controle da Ordem Pública, a institucionalidade e a governança, a modernização da gestão, a carreira e a formação. Estão envolvidos nesse processo representantes do governo, da sociedade civil, do setor empresarial, acadêmicos e policiais de alta patente.

No Brasil, o debate sobre modelos de policiamento e possíveis mudanças também está presente nas manifestações populares, nas diversas mídias, nos espaços acadêmicos e no ambiente político. Todavia, a janela de oportunidade de construção de agenda de política pública não se forma, mesmo com questionamentos dos modelos, com soluções apresentadas e clima político em construção.

Em uma perspectiva macro, de mudança das e nas agências policiais, Jacqueline Muniz pontua o quanto está presente nas manifestações populares e no discurso político de partidos de esquerda o fim das Polícias Militares. Para a especialista é uma solução equivocada e a proposta de unificação das polícias civis (PC) e militares (PM) era um lobby de comandantes, mas não há fundamentação de modelo de gestão, podendo ter como consequência o descontrole do potencial da autonomização policial, da liberdade discricionária e do poder de polícia.

A alteração do modelo policial com a unificação das polícias tornou-se Proposta de Emenda à Constituição em 2001 (PEC 446). Entretanto, assim como várias outras propostas no mesmo sentido, foi arquivada sem debate. Aliás, com uma simples consulta é possível verificar que o assunto PM recebe atenção parlamentar crescente. Em 1987 houve uma proposta legislativa sobre a PM que fixava o efetivo. Em 1988 foram 8, em 1989 foram 32. E torna-se crescente o número de propostas de lei. Em 2000 são 29; em 2002, 55; em 2003, 76. Já em 2015 são 178 propostas; em 2019, 177.

Todavia, as propostas legislativas versam sobre questões macro, como a unificação das polícias, sobre alterações no Sistema Único de Segurança Publica, sobre Plano Nacional de Segurança Pública; e sobre questões “micro”, como padronização dos uniformes. Os lobbys também continuam, seja por questões de classe trabalhista, por disputa de poder das agências, de manutenção orçamentária, entre outras questões, sem alterações institucionais.

Os movimentos sociais também fomentam alterações no campo. O processo de visibilidade das violências promovido por grupos organizados alterou lei ao tipificar condutas como crime; alteraram estruturas institucionais ao demandar agentes especializados para conduzir os ritos (policiais militares, delegacias, varas) e, em alguns casos, políticas públicas de intervenção. São alterações importantes, todavia, o simples fato de haver grupos especializados é um dado que é uma exceção e que as práticas institucionais ainda não coadunam com a percepção recém-implementada.

O poder executivo também fomenta mudanças. Renato Sérgio de Lima, Betina Barros e Isabel Figueiredo analisaram os Planos Nacionais de Segurança Pública pós 1988 e percebem um alinhamento na construção da informatização e compilação de dados. Mas também perceberam que a incorporação das inovações é residual e pendular. Assim como a mudança de plano com cada novo governo interrompe modelos de segurança pública inicialmente implementados.

Há alterações no campo de Segurança Pública no Brasil. Mas não é possível tipificar como reformas. São “reacomodações” institucionais provocadas pelas mudanças políticas, sociais e culturais com o intuito de preservas as agências. Essas “reacomodações” institucionais estão mais para evitar uma reforma do que para garantir plenamente as alterações na gestão institucional, no modelo de policiamento, no sistema de controle e fiscalização da prática policial, por exemplo.

As alterações até aqui, sejam por vias legislativas, por proposições orçamentárias do executivo, sejam por vocacionados agentes do estado com interesse público agindo individualmente e/ou por força política dos movimentos sociais são remendos em uma colcha de retalhos em uma cama velha. Serve momentaneamente, cobre e esquenta em pontos isoladamente, mas deixa passar o frio na maioria, e o problema mesmo está no conjunto: colcha, colchão e cama. São necessárias alterações institucionais nas polícias (formação, integração, condições de trabalho, entre outros), na política de segurança e na participação da sociedade (na formulação das diretrizes e políticas de segurança).

A dúvida é: se no Brasil há casos e manifestações semelhantes aos da Revolta de 2019, o que falta para fomentar a formação de uma agenda de reforma ou refundação? Ou melhor: quais forças impedem?

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