As (faltas de) prioridades do associativismo policial
Quando um sindicato, associação ou político diz apoiar policiais e não vemos um projeto de lei, uma política pública ou uma priorização disso como pauta, acabamos por questionar quem realmente está ao lado dos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública
Lívio Rocha
Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo desde 1999. Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV) e doutorando em Políticas Públicas (UFABC). Pesquisador no Grupo de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Costumamos dizer que, no Brasil, ninguém morre de tédio. No último Carnaval paulistano, uma associação classista de policiais emitiu nota de repúdio a respeito do desfile de uma escola de samba por demonizar os policiais.
Inicialmente, para quem não é familiarizado com o hip hop em São Paulo, cabe analisarmos o contexto do desfile.
A escola de samba Vai-Vai está localizada no bairro da Bela Vista, uma das partes pobres da região central da capital de São Paulo. As demais escolas estão mais afastadas da região central. O enredo do seu desfile este ano foi “Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop – Um manifesto paulistano”. Um dos principais homenageados deste tema é o grupo de rap Racionais Mc’s, cujo álbum lançado em 1997, “Sobrevivendo no Inferno”, tem uma música com esse nome (Capítulo 4, Versículo 3). Esse álbum foi considerado tão influente e forte em retratar a realidade das periferias paulistas que já foi tema de vestibular da Unicamp e o grupo tem recebido títulos de doutores honoris causa por diversas universidades.
O carro-chefe desse álbum, que inclusive que fez o grupo aparecer na grande mídia, foi a música “Diário de um detento”, na qual o eu-lírico é um detento narrando a véspera e o momento do Massacre do Carandiru, episódio em que a atuação policial resultou em 111 mortos, em 1992. Um dos compositores da música é Josemir Prado, que virou detento do Carandiru após o Massacre e colecionou relatos dos sobreviventes. Brown, membro dos Racionais, leu e ouviu esses relatos em uma visita ao Carandiru, quando conheceu o Josemir.
Fora esse episódio, é interessante lembrar o contexto paulistano na época de lançamento do álbum (1997). A periferia da zona sul da capital, onde um dos membros do Racionais Mc’s, o Brown, foi criado e reside até hoje, tinha taxas de homicídios que só perdiam para a da Segunda Guerra Mundial (chegou a 56 homicídios em um fim de semana de 1999). O Brasil assistia repetidamente o caso da Favela Naval, onde alguns policiais foram filmados cometendo atos de abusos, tortura e morte naquela comunidade, situada em Diadema, um dos municípios da Grande São Paulo que fazem divisa justamente com a periferia da zona sul da capital.
Por óbvio, a demonização dos policiais no desfile foi uma alegoria crítica a esse contexto. Porém, não pretendemos debater como algumas pessoas e grupos não entendem o conceito de liberdade de expressão ou não sabem lidar com críticas. Pretendemos aproveitar a oportunidade para retomar o debate sobre associativismo policial.
Neste Fonte Segura, num breve retrospecto, tivemos oportunidade de refletir sobre as candidaturas policiais e o sindicalismo policial [1] e sobre greve, sindicalismo e policiais[2]. Vamos avançar sobre o associativismo policial.
Aos policiais militares, pela característica militar, a Constituição Federal de 1988 proibiu o sindicalismo. Aos policiais civis o mesmo não ocorreu. Isso não quer dizer que os sindicatos policiais civis são completos. Uma atividade sindical completa requer direito à sindicalização, direito à negociação coletiva e direito à greve. Nenhum sindicato policial civil obteve negociação coletiva, mesmo com determinação expressa do STF na ARE 654432/GO, a mesma decisão que proibiu a greve de policiais civis.
Para nenhuma categoria policial essa falta de direito sindical, ou direito incompleto sindical, foi um obstáculo para uma luta justa por melhores salários e condições dignas de trabalho. Como a atividade sindical policial é dificultada, a solução foram as associações de policiais.
Embora tenham sido criadas por uma vontade coletiva da categoria policial em se organizar, é recorrente no meio policial a crítica de que tais associações colocam em segundo ou terceiro plano a luta pela categoria policial, priorizando venda de produtos (seguro, convênio médico, viagens, colônias de férias…) ou servindo apenas como plataforma política para a liderança ou para algum político não-policial que supostamente apoie pautas de interesse da categoria policial. A multiplicidade de entidades sindicais e associativas policiais em alguns Estados é fruto justamente da dissidência de grupos internos que não concordavam com esse rebaixamento dos interesses da categoria pelo grupo dirigente dominante. Algumas dessas associações possuem dirigentes que estão há mais de uma década na liderança, mesmo com a trajetória descendente dos direitos e condições de trabalho da categoria que deveriam defender.
Como é costumeiro, não oferecemos uma resposta definitiva, mas elementos para que cada pessoa reflita sobre o assunto: quais as prioridades de um sindicato ou associação policial? Luta por melhorias salariais? Lutar pela melhoria da corporação? Luta por dignidade no trabalho policial? Ou se preocupar com críticas do meio artístico/popular? Lembramos ainda que na iniciativa privada há uma distinção entre sindicatos de trabalhadores e sindicatos patronais. Essa linha parece estar borrada no caso de algumas associações policiais.
Por fim, adentramos o ano de 2024 relembrando que a maior causa de morte de trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública continua sendo a falta de saúde mental, resultante das condições dentro e fora do trabalho, responsabilidade dos governadores e políticos que dizem apoiar policiais. O suicídio, exceto pelo ano 2020, quando foi “vencido” pela COVID-19, continua sendo a maior causa de mortes de policiais. Quando um sindicato, associação ou político diz apoiar policiais e não vemos um projeto de lei, uma política pública ou uma priorização disso como pauta, acabamos por questionar quem realmente está ao lado dos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública.