Larissa Urruth Pereira
Doutora em Ciências Sociais (PUCRS). Mestra em Ciências Criminais (PUCRS/2016). Especialista em Ciências Penais (PUCRS/2015). Bacharela em Direito (UniRitter/2012). Professora do Programa de Pós-Graduação em Processo Penal - UCS/IBRASPP. Professora no Centro Universitário Cenecista de Osório e na Faculdade Cenecista de Gravataí. Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS). Advogada Criminalista.
Em 2017, no estado do Rio Grande do Sul, 478 pessoas se encontravam cumprindo penas privativas de liberdade em delegacias, viaturas, lixeiras e calçadas, aguardando a indicação de vagas no sistema prisional. Os dados sobre o encarceramento no estado indicaram que esse não foi o período de maior déficit estrutural de vagas.
Diversas manifestações da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) em processos judiciais que discutiam a situação informaram que essas custódias estavam acontecendo por conta de interdições judiciais de diversas casas prisionais, da falta de vagas no sistema, da existência de facções criminais e do crescimento da população carcerária. Ainda que de forma sutil, essas manifestações indicam a existência de conflitos entre as instituições. A SUSEPE alegou que a falta de vagas era responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública (mando político) e que o problema, em boa medida, era causado pela postura do Judiciário em relação à determinação das interdições. No mesmo sentido, os policiais civis alegaram que o problema estava ocorrendo por conta de uma espécie de greve realizada pela SUSEPE.
Identificada tal tensão, pôde-se perceber que quando os atores institucionais necessitavam pressionar o mando político em busca de reinvindicações próprias (a SUSEPE, em busca de melhorias salariais; o judiciário, como forma de pressão para melhorias estruturais na execução da pena) tais atores, por meio de greves brancas ou de adoção de procedimentos padrão, deixaram de receber os presos no sistema, gerando as prisões irregulares.
Pouco suscetível a controles sociais ou mesmo a mecanismos estatais de accountability, esse sistema frouxamente articulado se relaciona com o poder político por meio de uma gramática bastante clientelista, que não gera apenas uma relação de subordinação, mas nos termos propostos por Gonzales (2019), uma espécie de interdependência. Por meio desse tipo de relação os atores desse campo negociam suas “mercadorias” (prerrogativas públicas) de acordo com interesses particulares (capital político ou lucro) ou corporativos (recursos materiais, verbas, promoções). Essa configuração tende a gerar uma lógica de reciprocidade (SAIN, 2019) que se caracteriza por uma tendência de não interferência do governo político no trabalho das instituições, que em troca, tenderá a instrumentalizá-las.
Na maior parte do tempo, seja pelo monopólio das informações a respeito das taxas criminais, seja pelo insulamento que se constrói, as instituições detêm mais instrumentos e possibilidades de apresentar resistências em relação ao mando político. Isso também é possibilitado pela tendência dos governos em estabelecer diretrizes frouxamente definidas. O resultado disso é que cada lado cede o mínimo possível na busca de evitar crises que possam gerar custos políticos ou institucionais (tais quais as custódias irregulares), o que acaba mantendo um certo status quo organizacional.
Foi pensando nesse status quo organizacional que se mostrou importante ter em conta os interesses, discursos e práticas dessas instituições que podem caracterizar um agir atomizado e manter a maior disponibilidade de poder nesse entramado político-institucional. Para entender isso se propõe uma chave conceitual empírica, qual seja, “núcleo duro” das instituições de segurança pública. Essa chave consiste na proposta de pensar essas instituições a partir de três pilares que possibilitam analisar como agência dos sujeitos e estrutura das instituições podem se relacionar e gerar efeitos concretos nesse campo. São eles: a hierarquia, a desconfiança e o saber técnico.
A hierarquia gera sentimentos de desrespeito e humilhação por parte dos subordinados em relação aos seus superiores, bem como descrença dos superiores em relação aos seus subordinados, o que leva estes últimos a diminuir a aderência ou o interesse em cumprir as determinações dos primeiros. Essa dinâmica reforça o insulamento institucional, uma vez que dá centralidade às visões de mundo particularizadas dos sujeitos que, influenciadas por essa estrutura hierárquica, se afastam e acabam não pautados por diretrizes governamentais, mas sim por aquilo que acreditam ser certo ou legítimo a partir de suas próprias convicções.
A desconfiança torna as práticas rotineiras pouco suscetíveis a mudanças. Ela se instaura a partir da estrutura das instituições, que têm suas cúpulas nomeadas pelo mando político, por meio de critérios nem sempre objetivos. Isso gera uma sensação de que a organização institucional é pautada por politicagem, além disso, a nomeação dos cargos gera uma percepção de provisoriedade, uma vez que frequentemente eles serão alterados. Isso tudo fomenta uma atuação particularizada, que também irá privilegiar o agir baseado nas visões de mundo específicas de cada agente.
O último pilar diz respeito à prevalência de um saber técnico como principal orientação a ser observada pelas cúpulas e pelos atores institucionais para o planejamento, tradução e execução das políticas e ações na área da segurança. Não há um consenso sobre o que é o saber técnico em cada uma das instituições. Ele acaba sendo o resultado da interpretação dos atores institucionais sobre os dados e as rotinas de suas atividades. Por conta disso, o agir no contexto dessas instituições se retroalimenta em torno de suas próprias práticas, sendo pouco suscetível a mudanças.
A proposta dessa ideia de “núcleo-duro” busca explicar que, dadas essas condições, forma-se um cenário institucional pouco permeável, no qual as diretrizes políticas acabam encontrando aderência no corpo operacional-institucional somente quando encontram afinidade com os interesses desses grupos. No entanto essa relação não é uma via de mão única. Os atores institucionais não são desvinculados do mando político, então, para atingirem seus interesses também irão fazer concessões e esse movimento de busca de afinidades eletivas se dará para os dois lados (político e institucional). No entanto, quando esse “jogo” de reciprocidade produz ruídos, ou tensões, as prerrogativas públicas podem se revestir como “mercadorias” indo de encontro àquilo que se espera das ações na área da segurança, como é o caso das custódias ora analisadas.
Conhecer as estruturas (funcionais e cognitivas) que compõem essa rigidez nuclear das instituições de segurança pública, parece ser um caminho para a reforma tão necessária dessas instituições. Principalmente no que diz respeito à assunção de um governo democrático que possa apresentar diretrizes e controles institucionais voltados à promoção de direitos e da cidadania, no lugar dos desarranjos, da violência e do autoritarismo tão presentes no campo do controle do crime em nosso país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GONZALES, Gustavo J. La trama vincular político-policial: una exploración de las relaciones de interdependencia entre política y policía en la Provincia de Santa Fe (1995-2015). Tese de doutorado em Ciência Política, Santa Fé: Faculdad de Ciencia Política y Relaciones Internacionales, 2019.
SAIN, Marcelo. El Leviatán azul: policía y política en la Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2019.