Política e Polícia 16/08/2023

Art. 142 da Constituição Federal: democracia é suportar quem não gostaríamos de ver no poder

Não podem as Forças Armadas, ou qualquer outra Instituição, servir de poder moderador para a vida democrática do país

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

As discussões acerca de mudanças no artigo 142 da Constituição Federal continuam, num clima que nem sempre é o mais apropriado para a democracia.

Um policial militar é morto no Guarujá e os jornais de grande circulação sequer dão uma nota em referência ao fato. Ao haver reação por parte da Polícia Militar, necessária para que São Paulo não se torne uma terra cujos criminosos se sintam empoderados, como sói ocorrer em outros Estados da Federação (ainda que devam ser averiguadas e apuradas as condutas de quem perpetrou as ações) e o termo “chacina” passou a ser empregado por alguns desses veículos. Tal tipo de cobertura só agrava e radicaliza o clima político no país, além de enfraquecer aqueles que postulam uma vida civilizada para os contendores políticos.

Clima decorrente do radicalismo por que passa a sociedade brasileira nos últimos dez anos.

Volta à tona o tema do artigo 142 da Constituição Federal. Ao que se noticiou no sábado, dia 5 de agosto, no jornal Folha de São Paulo, a proposta do governo é alterar a Lei n. 97, de 1999.

Como povo, continuamos a jogar para debaixo do tapete nossas coisas mal resolvidas. Não temos coragem de encarar os problemas, discuti-los e chegar a um mínimo de consenso.

Projeto dos deputados Carlos Zaratini (PT/SP) e do competente Alencar Santana (PT/SP), com quem tive a oportunidade de conviver de forma bastante republicana enquanto comandante do Comando de Policiamento 7 (região metropolitana norte de São Paulo–Guarulhos e demais cidades do entorno), em 2012-2013, propõe a mudança do artigo 142.

Estão cobertos de razão. Não podem as Forças Armadas, ou qualquer outra Instituição, servir de poder moderador para a vida democrática do país. Não é competência de instituições armadas a “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Por esta redação, se o presidente da República, por sua iniciativa, requisitar os serviços das Forças Armadas para garantir o próprio poder, elas podem atuar contra o Legislativo e o Judiciário. Ou seja, estão amparadas no texto constitucional para perpetrar um golpe de Estado. Chega a ser surreal para uma democracia.

Alterar a Lei n. 97/99 em nada altera o quadro!!!

Intérpretes ultrarreacionários, como Ives Gandra da Silva Martins, vão continuar encontrando guarida no texto constitucional para, daqui a 40 anos, quando outra crise chegar, legitimar um golpe de Estado, com interpretações esdrúxulas e isoladas, sem qualquer amparo na doutrina constitucional do país e nas decisões jurisprudenciais dos tribunais superiores do país.

Se não há sustentação política para a mudança constitucional neste momento, por conta de outras prioridades do governo (“é a economia, estúpido”), que se espere o momento adequado.

Tenho convicção plena de que não houve intervenção militar no Brasil por conta do firme propósito do comandante do Exército. Por esta razão, discordo frontalmente do artigo escrito pelos professores Lucas Pereira Rezende (UFMG), Conrado Hubner Mendes (USP) e João Carlos Amoroso Botelho (UFMG), na seção Tendências e Debates (FSP, 06/08/23), para quem as Forças Armadas contribuíram para o quadro caótico por que o Brasil passou nos últimos anos.

Há que se distinguir os integrantes dessas Instituições e a Instituição em si. Artigo de José Murillo de Carvalho, há uns bons anos, nos ensinou a mudança de postura do Exército após 1930.

Numa sociedade cindida, em que 50% está de um lado e 50% do outro, basta um dos lados contar com o poder das armas para que o jogo esteja definido. Ainda que o STF e o TSE tenham tido um papel preponderante sob a égide institucional-democrática do país, um golpe sempre fugirá dessa normalidade, mesmo respaldado pela atual inscrição do artigo 142.

Alterar o artigo 142, proibir carreiras essenciais do Estado (não apenas militares, mas policiais federais, procuradores, juízes, auditores) de participar da vida política da Nação, criar períodos de desincompatibilização para a participação eleitoral são medidas prementes para a normalidade constitucional e democrática do Brasil.

Enfrentar de frente tais questões não se trata de perseguição ou de retaliação. São, antes, medidas preventivas para a perenidade da democracia. Defesas infelizes do presidente Lula a respeito das ditaduras da Venezuela, de Cuba ou da Nicarágua não podem nos esmorecer de solidificar os padrões democráticos da Nação.

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