Arlindo e Luiz (ou porque devemos falar de um estado de coisas inconstitucionais, na violação de direitos da população negra na ADPF 973)
O prestígio social ainda chega pela via da exceção. “É o primeiro negro a…”, pode ser uma frase completada não com o que a imaginação permitir – porque o racismo mina os sonhos e os futuros
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Ficamos sabendo, nos debates em plenário no processo da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 973, que vêm tratando do racismo estrutural e da violação de direitos da população negra, que Arlindo Cruz e Luiz Fux foram colegas de colégio. Em uma instituição pública renomada e voltada à elite carioca, um encontro tão improvável de duas biografias aconteceu. Eis o poder da educação enquanto catalisadora da convivência social, em que a exposição ao diverso acontece e pode (ou não) gerar mudanças.
A complexidade da convivência na diversidade racial nos traz, contudo, para além de relatos inusitados como esse, inúmeros casos de racismo. E aqui não estamos lidando com as relações interpessoais. O que temos é reflexo de uma inércia estatal que chancela o “cada um por si”. Diferente do que a maioria dos ministros do STF considerou, persiste sim um estado de coisas inconstitucionais na violação de direitos da população negra.
Em 2025, o cenário trazido pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública vai na contramão da interpretação jurídica, majoritariamente manifestada pelo Supremo. Negras são as mulheres que estão no topo dos índices das vítimas de feminicídio – 63,6%. Negros são os homens encarcerados, que se amontoam no sistema prisional – 68,7%. Pessoas negras são as maiores vítimas de letalidade policial – 82%. Embora choque, é necessário que se diga – nunca foi diferente, nem mesmo com a redemocratização e a Constituição Cidadã.
O prestígio social ainda chega pela via da exceção. “É o primeiro negro a…”, pode ser uma frase completada não com o que a imaginação permitir – porque o racismo mina os sonhos e os futuros. Mas, no atual estado de coisas, as reticências podem ser substituídas pelas reverberações dos avanços que, paulatinamente e pela insistência incansável dos movimentos sociais negros, têm ganho contorno pela guarida dos direitos fundamentais.
Importante é percebermos que, se há grupos minorizados, há outros em posição majoritária. E esses últimos detêm o controle narrativo nas instituições que ocupam, permitindo que elas expressem seus interesses. Sem a mudança dos que as integram, geração após geração, continuaremos assistindo aos mesmos debates. Isso porque o exercício do poder, para se manter como tal, precisa refletir a expressão dos seus membros. Não precisamos ir longe para vermos que, nas instituições jurídicas, o grupo majoritário não é o de pessoas negras.
Por isso, reconhecer o estado de coisas inconstitucional quanto à violação de direitos da população negra é parte crucial de uma virada de chave na questão racial. Não reconhecê-lo é reproduzir a narrativa da democracia racial, que ainda reverbera com a ideia de que o pertencimento racial não é relevante no Brasil, país de uma suposta cordialidade racial. Essa cordialidade seria expressa nos marcos legais, visto que não há norma jurídica que expressamente consagre a segregação racial. Como se racistas precisassem de lei para ser racistas…
“Mas o direito vigente não segrega racialmente”, os incrédulos dirão. É certo que não temos hoje, diferente de outrora, a exclusão explícita para o contingente negro da população brasileira. É que não segregar não basta. É importante, mas o antirracismo exige bem mais do que boas intenções. Não cabe hesitação no antirracismo.
Convém lembrar que, do ponto de vista da técnica de controle de constitucionalidade – e a ADPF é justamente um dos instrumentos disponíveis para tanto – as decisões do STF nesse tipo de ação têm eficácia contra todos (são “erga omnes”) e possuem efeito vinculante. Declarar, portanto, o ECI implicará extrapolar as partes envolvidas no caso concreto e estender a decisão sobre todos que estão sob a jurisdição brasileira. Além disso, a observância da decisão não será apenas obrigação do Judiciário, mas de todos os órgãos da administração pública, direta e indireta, em todas as esferas federativas.
O que parece uma formalidade é o poder do direito, declarado em um devido processo legal. Não mais teríamos desculpa ou subterfúgios para localizar a quem cabe atuar pelo fim do racismo. É disso que estamos falando quando defendemos o reconhecimento do ECI. Ainda sobre Arlindo e Luiz: as oportunidades na largada passaram pelos mesmos bancos escolares. No entanto, parece que os resultados não foram equiparáveis…Será mesmo que não faz diferença para a população negra ter esse instrumento jurídico do ECI a seu favor?

