Múltiplas Vozes 18/10/2023

Remédio genérico ou placebo

Usar os instrumentos da análise criminal como coleta de dados, análise e síntese e disseminação são aprendizados que alguns policiais recebem na academia. Mas, apesar de melhorarem a situação no médio prazo, dão lugar a abordagem indiscriminada e a “operações” que aparecem na imprensa

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Cerca de vinte anos atrás parecia que a ideia de usar o raciocínio poderia ajudar muito o trabalho policial. Tudo encaminhava para isso. Hoje já não tenho mais tanta certeza. É verdade que o mapeamento dos pontos críticos (ou hot spots, como preferem os americanófilos) até certo ponto vingou. Em muitos estados a polícia preventiva, leia-se PM, usa essa tecnologia para distribuir efetivos. Mas parece que a coisa parou por aí. Nas análises às quais tive acesso não vi nenhuma interligação entre o fenômeno criminal e as outras esferas sociais. É como se o aumento do crime em determinada área fosse um fenômeno espontâneo, nada tivesse a ver com as questões sociais e urbanas.

E, quando isso ocorre, o remédio é sempre genérico. Como naquele pronto-socorro da periferia, sempre lotado, com poucos funcionários e quase sem remédios. Então, receituário fica automático. Dor de garganta? Anti-inflamatório XPTO. Dor de cabeça? Analgésico XYZ. E assim vai.

É claro que isso é uma generalização grosseira, existem locais nos quais os médicos, e os policiais, pelo menos tentam compreender o fenômeno antes de receitar. O tempo, porém, é sempre curto. Por conta disso, as soluções são muitas vezes automáticas. Ou seja: ajudam em alguns casos; na maioria, não.

No final dos anos 1990, quando comecei a trabalhar com análise criminal para o Ministério Público de São Paulo, todo mundo apostava na análise para entender o crime, e muitas instituições começavam a fazer uma aproximação multidisciplinar. Depois, já no Ministério da Justiça, vi que a coisa não tinha evoluído como deveria. Para distribuir as verbas do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), por exemplo, nunca eram consideradas as circunstâncias locais, apenas os números. Isso porque o programa já veio pronto, com alguns “remédios” marcados. Além das tradicionais viaturas e armamentos havia a ideia de levar alguns programas sociais. Mas a distribuição de recursos era feita de forma quase automática. O prefeito, governador ou secretário de segurança dizia que seu problema era a violência sem sentido na periferia. Por esse motivo, levava um pacote que incluía os Territórios da Paz, Mulheres da Paz, treinamento de pessoas para mediação de conflitos etc. Caso houvesse uma questão de crimes patrimoniais, havia o programa para instalação de câmeras nas vias públicas, que todo mundo levou um pouco. Só que tudo isso era feito de forma automática, sem análise caso a caso. O que significa que em alguns casos foi o remédio correto; em outros não.

Isso na macropolítica de segurança. Mas, mesmo na área estritamente policial, a análise perdeu terreno. Trazendo essa digressão para o presente, pensemos um pouco o crime mais comum do centro paulista. O furto e roubo de celular. O problema já começa aí, nessa colocação inicial. Furto ou roubo? Estudando os casos detalhadamente, um analista dedicado percebe que o mesmo crime às vezes é chamado de furto e outras de roubo. Um exemplo é o famoso crime do “tapinha”. Ele ocorre quando o ladrão tenta pegar o celular da mão de uma vítima, mas esta segura com força. Então o infrator dá um tapa na mão e quase sempre o indivíduo solta o aparelho. É claro que isso pode ser considerado roubo por envolver uso de violência, mas é muito diferente dos casos em que três ou quatro ladrões cercam uma pessoa na rua e subtraem o aparelho na “forçada”, ou em casos que raramente ocorrem nas áreas centrais, nos quais uma arma é utilizada para ameaçar o dono do objeto.

Qualquer um que já tenha trabalhado em investigação sabe que lidar com esses dois tipos de criminosos é diferente. A identificação dos autores, por exemplo, varia muito quando ele pega e corre ou quando ameaça e encara a vítima. Além disso, um caso às vezes implica formação de quadrilha, de forma que, ao identificar um autor é aberto o caminho para se chegar aos comparsas, enquanto no outro caso a única pessoa com quem o ladrão solitário tem relação é o receptador. Muitas vezes até conhecem vários colegas, gente que atua como ele. Aliás, a pesquisa que estou levando a cabo nos últimos meses confirma, mostrando que muitos deles moram juntos, nas mesmas pensões ou cortiços. Apesar disso, não “correm juntos”; é cada um por si. No máximo usam o mesmo receptador, que encontram em determinados locais em horas específicas. Em outras palavras, investigar quadrilhas tem um procedimento; crimes dispersos, outro.

Voltando ao nosso tópico inicial, mais do que investigar caso a caso para encontrar uma solução individual, é importante analisar as informações existentes para chegar aos criminosos. Em vez de apenas parar os “suspeitos” na rua, revistá-los e ver se são procurados, como a PM normalmente faz, para ter resultados concretos é necessário analisar o problema. Começando pela leitura de todos os Boletins de Ocorrência. E depois seguir, no mínimo, os seguintes passos:

  • Separar roubos e furtos.
  • Identificar indivíduos através de suas características físicas, existentes nos BOs.
  • Identificar quadrilhas agindo coordenadamente.
  • Verificar microrregiões onde cada indivíduo ou grupo atua.
  • Verificar as câmeras próximas aos locais das ocorrências e ver se circula alguém parecido com a descrição do BO.
  • Mostrar as fotos dos suspeitos, flagrados pelas câmeras, para as vítimas.
  • Por último, mas não menos importante, catalogar todos os possíveis receptadores mencionados em algum inquérito ou BO. Afinal, sem eles ninguém iria furtar ou menos ainda roubar um celular.

Ou seja, usar os instrumentos da análise criminal: coleta, análise e síntese e disseminação. Como cada policial que fez um curso de análise, ou mesmo de inteligência, aprendeu um dia na academia. Mas isso, apesar de melhorar as coisas no médio prazo, não dá resultados midiáticos rapidamente e, portanto, fica relegado ao dia de São Nunca, enquanto os placebos como abordagem indiscriminada e “operações” dão imprensa. Sendo assim, a situação persiste e as pessoas vão aprendendo que não devem usar o celular na rua, como indicam as placas em alguns locais públicos.

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