Segurança Pública na Amazônia 23/08/2023

AMAZÔNIA, SUAS CONTRADIÇÕES E VIOLÊNCIAS

Pouca ou nenhuma discussão é feita no interior das instituições de controle social para compreensão das condições sociais da economia do crime, reduzindo o tratamento da questão à realidade formal de um direito branco, eurocentrado e incapaz de traduzir a complexidade do fenômeno

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Luiz Fábio S. Paiva

Professor de Sociologia e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará

Próximo à cidade de Manaus, no Estado do Amazonas, é possível visitar o Museu do Seringal e escutar histórias como as de nordestinos levados às áreas de extração da borracha, entregues à própria sorte e assassinados depois de cobrarem seus rendimentos aos patrões. Antes deles e junto com eles, foram mortos em massacres desde os tempos coloniais integrantes dos povos Waimiri Atroari, Tucano, Ticuna, Sateré Mawé, Matsés, Marubo, Kokama, entre tantos outros que seguem desconhecidos da média da população brasileira. Ainda de maneira recorrente, é possível encontrar notícias de ambientalistas, lideranças, defensores de direitos humanos, quilombolas e moradores de comunidades tradicionais mortos em virtude das ambições e omissões das elites econômicas e políticas que controlam as diferentes regiões do território amazônico. Estima-se que, segundo dados do Relatório do Fundo Amazônia 2023, desde 1º de agosto de 2008 foi desembolsado R$ 1,51 bilhões em apoios a projetos na região. Outros valores foram desembolsados pelos governos estaduais e federal, mas boa parte desses recursos são consumidos por esquemas de corrupção recorrentes em todas as instâncias de governo. É correto afirmar ainda que mesmo os recursos que chegaram e efetivamente foram aplicados não foram suficientes para transformar de maneira qualitativa a realidade de povos que sofrem com a miséria, injustiças e violências, diariamente.

Algo importante sobre a Amazônia é que a floresta guarda inúmeras contradições que atingem de maneira significativa as pessoas que residem em diferentes áreas rurais e urbanas. Mesmo vivendo em uma região conhecida por guardar uma das maiores reservas de água doce do mundo, inúmeras populações amazônicas sofrem por falta de água potável, pois em diversas localidades não existe tratamento adequado desse insumo fundamental para a vida humana. A falta de recursos básicos para sobrevivência não apenas ilustra um fenômeno da desigualdade social comum ao território nacional brasileiro, mas também expõe um fenômeno cujos efeitos repercutem de maneira significativa nos problemas de segurança pública, na Amazônia. Violações de direitos fundamentais da população criaram um ecossistema repleto de problemas, com pessoas precisando encontrar soluções práticas para sua sobrevivência diante da desassistência de políticas públicas. Neste contexto, criaram-se as condições objetivas para diferentes esquemas criminais geradores de possibilidades e oportunidades econômicas. Importante destacar que, neste cenário repleto de contradições, as elites econômicas e políticas têm um papel decisivo na economia do crime na Amazônia, pois negócios gerados pela exploração ilegal do garimpo, da madeira e de outros recursos naturais têm a participação direta de agentes políticos e empresas nacionais e internacionais.

Em relação à exploração de madeira e ouro na Amazônia, o governo Bolsonaro atuou de maneira corrosiva junto às instituições de controle e fiscalização, pavimentando o caminho de esquemas criminosos estruturados por empresas que, em sua atuação, se aproveitam das brechas legais para degradar os recursos da região. Milhares de trabalhadores pobres são afetados por essa economia do crime que, apesar de todas as suas contradições, passou a ser fundamental para a sobrevivência de muitas famílias. Pouco se discutem os efeitos sociais de um garimpo ilegal e do seu papel na economia local. Nas intervenções policiais, garimpos são destruídos e trabalhadores pobres são presos ou expulsos sem a consideração das consequências desse processo nas comunidades alcançadas pelos recursos dessa economia do crime. Assim, não é incomum encontrar pessoas que oferecem apoio à economia do crime enquanto criticam as ações governamentais de intervenção nos territórios amazônicos. Em muitos casos, essas intervenções são consideradas proibicionistas e alheias às necessidades das populações locais. Tal fato explica, em alguma medida, a adesão de comunidades da região a projetos de extrema direita que, em sua ambição eleitoral, vendem uma ideia distorcida de desenvolvimento contrária a preservação da Amazônia.

Gerentes de esquemas de tráfico de drogas entenderam, também, as fragilidades e contradições desse ecossistema povoado por pessoas pobres e possíveis de serem assediadas para serviços necessários ao mercado ilegal de drogas. O trânsito de toneladas de drogas pela Amazônia, desde as regiões produtoras até seu destino, é um dos problemas de segurança pública eleitos como principais pelos estados nacionais responsáveis pela administração da região. Grandes empresas já apareceram como parte de esquemas criminais responsáveis pelo transporte de pasta base e cloridrato de cocaína para comercialização em grandes centros urbanos. Não obstante, boa parte do transporte dessa droga envolve pessoas encontradas e recrutadas nos territórios para fazer a droga passar de um ponto a outro. Nesse transporte, milhares de pessoas são presas e em função das quantidades de drogas sob sua posse enquadradas como traficantes, gerando uma série de novos problemas em função do encarceramento em massa da população nos estados da região amazônica. Pouca ou nenhuma discussão é feita no interior das instituições de controle social para compreensão das condições sociais da economia do crime, reduzindo o tratamento da questão à realidade formal de um direito branco, eurocentrado e incapaz de traduzir a complexidade do fenômeno.

Importante ainda discutir o problema das drogas que não passam e permanecem no território amazônico, alcançando comunidades tradicionais e povos com outras relações culturais relativas à experiência do uso de substâncias entorpecentes. É possível encontrar, em diferentes culturas ancestrais dos povos amazônicos, diferentes usos de substâncias entorpecentes. O que não é possível encontrar na história desses povos são os usos que brancos fazem dessas substâncias, pois sua cultura criou rotinas de apreciação dos entorpecentes típicas do seu estilo de vida em sociedade. No momento em que se colocam essas coisas em contato, é preciso ter ciência de que essas realidades serão transformadas de maneira substantiva. Assim, observam-se, em territórios da Amazônia, mudanças substantivas, sobretudo nas populações mais jovens que estimam um estilo de vida em áreas urbanas, com acesso ao uso de entorpecentes e vulneráveis aos problemas que isso produz. A violência doméstica, os conflitos interpessoais e atos de violência em função de brigas são apenas algumas pequenas amostras de processos que, em diferentes escalas, passam a alcançar comunidades tradicionais em processo de transformação.

A punição dos subalternos não pode ser o único caminho para política de segurança pública na Amazônia, com medidas de controle que proíbem, prendem e excluem possibilidades de vida para as pessoas. As atividades criminosas na Amazônia guardam, em suas causas e consequências, experiências que precisam ser apreendidas e não reduzidas a enquadramentos jurídicos exógenos às lógicas dos territórios. É muito comum encontrar, nas cidades amazônicas, operadores de segurança pública e justiça recém-formados e aprovados em concursos públicos, pouco ou completamente ignorantes às questões sociais do território. Em pouco tempo, incapazes de conviver com os problemas locais, consumidos pela pressão, buscam transferência e outros chegam para repetir o mesmo roteiro. Em suma, essa é apenas uma das muitas dificuldades institucionais evidentes, no dia a dia, de cidades amazônicas. Vale salientar que são sempre os moradores locais os maiores prejudicados pela incapacidade de gestão do Estado em uma perspectiva mais ampla de garantia de direitos, com consideração à vida de quem mora, trabalha e sobrevive na e da Amazônia.

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