Samira Bueno
Doutora em Administração Pública e Governo (FGV- EAESP) e Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Renato Sérgio de Lima
Doutor em Sociologia pela USP e Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
As mortes brutais do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no começo de junho de 2022, na região do Vale do Javari, no Amazonas, deram destaque ao fato de a Amazônia ser marcada pela violência extrema e pelas recorrentes violações de direitos humanos contra a sua população, com ênfase contra os seus povos tradicionais. A Amazônia é um exemplo nítido de como o modelo de segurança pública no Brasil é obsoleto e distante de oferecer respostas adequadas à realidade do cotidiano da população brasileira. O bioma, que é um dos nossos principais ativos geopolíticos e estratégicos, caracteriza-se pela sobreposição de violências e ilegalidades. O desmatamento, o garimpo ilegal, a corrupção, a criminalidade e a intensa presença de milícias e facções do crime organizado, com mais de duas dezenas de organizações regionais e duas grandes organizações nacionais (PCC e Comando Vermelho) que disputam as principais rotas nacionais e transnacionais de narcotráfico, transformaram a Amazônia brasileira em palco de guerras que impactam fortemente os índices de violência letal de toda a região e do país.
O crime, em função da omissão do Estado em suas múltiplas esferas e Poderes, criou um imbricado e interligado ecossistema de violência, impunidade e ilegalidades. A Amazônia como um todo parece dominada pela lógica dos grupos armados criminosos e, mesmo com as estruturas policiais e militares existentes que são capazes de atuar quando adequadamente mobilizadas, quem parece organizar a vida da população nela residente é o crime organizado, que vai corrompendo e ocupando a economia, a política e o cotidiano da região. Os principais grupos criminosos da região atuam como síndicos da Amazônia, administrando a vida das pessoas, da economia e dos territórios por eles controlados.
Não podemos deixar de explicitar que a Amazônia tem sido dominada pela lógica do terror, muito usada durante a ditadura militar inaugurada em 1964 e até hoje presente nos territórios dominados por milícias e outros grupos armados. E, o mais grave, isso só ocorre diante da impunidade. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em março de 2022 o estado do Acre possuía 78 delegados de polícia ativos. Se considerarmos que estamos falando de uma área que exige plantões de 24 horas, 7 dias por semana, teríamos, se todos estivessem em trabalho operacional, cerca de 19 delegados por turno para atender a população inteira do Acre. No entanto, o mais provável é que, diante desse efetivo, a maior parte dos delegados esteja concentrada na capital e em algumas cidades maiores e que não existam plantões. A mesma situação acontece, agravada, em Roraima, que no mesmo período informou ter apenas 56 delegados de polícia civil para cuidar de todas as investigações criminais do estado.
No mundo, se não existe investigação, não existe justiça. E, se não existe justiça, a sensação de impunidade se agrava e vira um salve-se quem puder e/ou quem tiver mais poder bélico. Um dos exemplos mais fortes dessa realidade é aquele que a Comissão Pastoral da Terra tem corajosamente denunciado há décadas e que mostra que a Amazônia é responsável por 77% das mortes por conflitos no campo nos últimos dez anos no país. Nos municípios classificados pelo IBGE como rurais, onde há baixa densidade populacional, a violência letal na Amazônia é 14,6% superior na Amazônia em comparação com a média brasileira.
Mas esse percentual é só uma forma de compreender a gravidade do cenário. Das 30 cidades brasileiras com taxas de mortes violentas intencionais superiores a 100 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, 10 estão localizadas na Amazônia. Dessas, 11 são cidades rurais, com pequenas populações que sofrem com a violência letal há pelo menos três anos seguidos, uma vez que a taxa média foi calculada para o período 2019-2021, como forma de evitar distorções pontuais causadas por algum crime pontual e extraordinário. Jacareacanga, no Pará, tem uma taxa média de MVI de 199,2 por 100 mil habitantes e é o segundo município mais violento do país. Só perde para São João do Jaguaribe, no Ceará.
Pelo mapa a seguir, nota-se que praticamente todos os 10 municípios com taxas médias superiores a 100 por 100 mil habitantes estão localizados ou imediatamente ao lado ou próximos a Terras Indígenas e das fronteiras com os demais países da Pan Amazônia, como Jupurá, no Amazonas, que fica próxima da fronteira da Colômbia e perto de Tabatinga, tida por estudiosos do crime organizado como a segunda principal rota de tráfico internacional de drogas e armas em atividade hoje no Brasil. Os dados, inéditos, explicitam algo com que a população dessas cidades convive diariamente, mas que, muitas vezes, é subestimado em nome dos volumes de crimes nas médias e grandes cidades. Quando se fala de crime organizado no Brasil, realidades como as das principais metrópoles vêm em mente. Todavia, essa mesma violência extrema das periferias das metrópoles atinge os pequenos municípios da Amazônia sem que seja dado destaque. E, pelo mapa, são exatamente os municípios marcados pela sobreposição de crimes, violências e ilegalidades que se destacam.
O problema parece não ter dono. E isso na faixa de fronteira, que, em tese, deveria ter um nível maior de fiscalização e controle, já que as FFAA têm a atribuição constitucional de vigiá-la. A violência extrema e a ocupação do território desses municípios por grupos armados criminosos corroem a soberania nacional, sem que exista coordenação federativa e republicana em torno das grandes consequências derivadas. O debate é politizado eleitoralmente, sem que soluções efetivas sejam endereçadas. Ou, quando muito, justifica operações pontuais e o financiamento de infraestruturas que deixam poucos legados e benefícios para os territórios.
Porém o quadro de violência extrema na região não se resume às áreas rurais. Na média geral, a violência letal da região é 38% superior àquelas das demais regiões do país. A violência da Amazônia é uma realidade que sequestra a liberdade da população e a torna refém de mercadores do caos. O medo, como muitos estudos já demonstraram, é um importante cabo eleitoral de grupos que exploram a boa-fé da população e dependem das ilegalidades para movimentar a economia do crime. Tanto que, nos municípios urbanos, com mais de 50 mil habitantes e/ou predominância de áreas densamente povoadas, a violência letal na Amazônia é 47,9% superior à média nacional desse tipo de município. O recado é direto, ou seja, se queremos ter um país mais seguro, justo e sustentável, precisamos retomar a Amazônia da lógica da violência e do terror. Os efeitos não serão apenas locais, mas afetarão diretamente a infraestrutura crítica da economia do crime e, com isso, conseguiremos enfraquecê-la. Sem isso, não existem investimentos capazes de mudar a trágica imagem de terra sem lei e sem justiça que tomou conta da região.