Múltiplas Vozes 08/05/2024

Ainda sobre os desdobramentos do caso Marielle Franco: oportunidade para novos olhares sobre a Polícia Civil

Argumentos ad personam vêm sendo utilizados para estigmatizar delegados, em geral, como manipuladores de provas. Isso fere a dignidade do cargo e não é aceitável

Compartilhe

Diogo Luna Moureira

Doutor e mestre em Direito. Professor do Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania da Universidade do Estado de Minas Gerais. Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais

Jésus Trindade Barreto Júnior

Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mestre em Educação

O descortinar da trama envolvendo o homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes mostrou, mais uma vez, a organicidade perniciosa que envolve a relação entre os governos e as polícias investigativas em toda a estrutura federativa do país. Tal situação não é inédita. Apesar do espetáculo que se criou quando da saída do então ministro Sérgio Moro, do governo, em 2020, o que estava em questão era, também, a interferência e a ingerência política na atividade de investigação.

A despeito da gravidade do problema evidenciado pelas apurações da polícia federal (inclusive pelo “conveniente” ascender de cargo do delegado de polícia Rivaldo Barbosa), o debate no cenário nacional enfatizou a questão da independência da perícia, potencializando-se proposta de emenda constitucional criando mais uma instituição policial.

Na crença de que a investigação se consuma pela tradição criminalística, legatária de um discurso sedutor de objetividade e isenção (como se a separação entre sujeito e objeto fosse um imperativo dessa condição), o Senado da República já aprovara, na Comissão de Constituição e Justiça, a PEC 76/2019, que cria e insere a chamada polícia científica no rol dos órgãos de segurança pública, descritos no art. 144 da Constituição da República. Hoje se acirram as pressões pelo andamento do respectivo processo legislativo.

Aqui não se questiona a legitimidade da estratégia separatista empenhada pelos peritos desde os anos 1990. Até porque, ao que tudo indica, a novidade institucional parece inexorável. O que se discute é a qualidade dos fundamentos geralmente apresentados como justificação. Entre eles, a ancoragem do argumento na questão dos direitos humanos, num maniqueísmo perverso que dá a entender sejam os demais atributos e operadores da investigação contaminados pelo defeito “moral” da dissimulação, enquanto a castidade das ciências exatas e naturais nos garantiria certeza política da verdade e imunidade contra o alegado fisiologismo ou irrelevância dos bárbaros, os demais funcionários da investigação. Argumentos ad personam vêm sendo utilizados para estigmatizar delegados, em geral, como manipuladores de provas. Isso fere a dignidade do cargo e não é aceitável. Até porque há normas jurídicas e ambiente político suficientes para contraposição e denúncias contra cogitáveis incidentes dessa ordem.

Noutra dimensão, são aceitáveis e absolutamente pertinentes as discussões sobre estruturas criptoautoritárias das polícias civis. Contradições internas e problemas de coesão devem ser enfrentados com coragem por essas organizações, num esforço qualificado de autocrítica, fundamentalmente fortalecendo as noções meta-jurídicas da investigação, algo que pode trazer à luz a absoluta permeabilidade do ato investigativo a inúmeras disciplinas de todo o espectro epistemológico. A apuração de comportamentos criminosos não se dá somente pela intuição e bom senso. Estes são pontos de partida. Investigação criminal é um processo lógico que deve se conformar a metodologias abertas inclusive aos saberes e aplicações das ciências humanas e sociais.

Colocar a investigação criminal em debate no contexto democrático de Estado pressupõe compreender a complexidade transdisciplinar de um procedimento sujeito a métodos aplicados. Isso porque a investigação apenas se realiza a partir de uma perspectiva transversal sobre o fenômeno criminal em sua plena expressão naturalística. No crime, a dependência causal entre comportamento humano (o agir, com suas incontáveis características e motivações) e a sua repercussão objetiva no mundo físico (a consequente repercussão material desse agir) é insuperável. É um dado da espontaneidade da vida. E essa dependência precisa ser melhor discutida e problematizada, com balizas da epistemologia, em sua densidade de autoenrredamento no curso das ações investigativas. Os guetos institucionais que dilaceram e mistificam a realidade não servem aos propósitos de um sistema que objetive promover justiça em sentido amplo. Assim pensando, é prudente e oportuno repensar a investigação criminal como uma atividade que não tenha o processo penal como finalidade exclusiva. Para isto serve o inquérito policial (ou qualquer outro nome que se dê a ele), que deve se livrar do caráter burocrático e cartorial, funcionando como otimizado colecionador de documentos comprobatórios da regularidade jurídica dos atos investigativos.

Reflexões democráticas sobre a investigação criminal, capazes de garantir e promover direitos fundamentais, só são possíveis e aplicáveis quando se colocar em debate a reconceituação de institutos jurídicos e mecanismos técnicos que lhe caracterizam historicamente, revisitando os modelos políticos da imbricação entre governo e estruturas institucionais de investigação do país. Esse esforço exige, aí numa perspectiva jurídica emancipatória, alguma forma de autonomia das polícias investigativas, obviamente, num modelo distante do regime político-jurídico da independência, só cabível na lógica montesquiana. Autonomia, aqui, significa um definido distanciamento dos interesses sectários que se infiltram em governos, mas não insubmissão ao controle administrativo dos próprios governos e, fundamental dizer, da sociedade civil.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES