Tema da Semana

Ainda sobre a (des)militarização das polícias

A desmilitarização refere-se ao grau de diferenciação das polícias em relação ao campo militar. Para isso, é necessária a construção de uma identidade profissional própria. Em certa medida, a desmilitarização implica a profissionalização das polícias

Compartilhe

Arthur Trindade M. Costa

Professor de Sociologia da UnB e membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Recentemente o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os resultados da Escuta dos Profissionais de Segurança Pública no Brasil. A pesquisa foi realizada por meio de um questionário eletrônico, respondido por 9.067 profissionais de segurança de todas as unidades federativas e corporações policiais brasileiras entre abril e maio de 2021. A escuta repete algumas perguntas da pesquisa Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização da segurança pública realizada em 2014.

Comparando os dados das pesquisas, verificou-se uma mudança de opinião sobre a reorganização das carreiras. Em 2014, 66,3% dos respondentes concordaram total ou parcialmente que a estrutura das carreiras policiais era inadequada. Esse percentual caiu para 56,5% em 2021.

As duas pesquisas mostraram que o modelo de polícia preferido dos profissionais é aquele que envolve uma polícia unificada, de ciclo completo, de caráter civil e com carreira única. Entretanto, a preferência por esse modelo parece estar perdendo força, caindo de 56,9% em 2014 para 46,8% em 2021. Em contrapartida, aumentou o apoio ao modelo de polícia unificada, de ciclo completo e militar, que passou de 9% para 14,4%. Ou seja, a ideia de polícia militarizada ganhou força entre 2014 e 2021.

Analisando outros aspectos da pesquisa verificamos que o apoio ao modelo militarizado de fato ganhou força. Em 2014, 63,9% dos policiais eram a favor do fim da justiça militar. Em 2021, este número caiu para 46,5%. Em 2014, cerca de 86,7% dos policiais eram favoráveis a sindicalização. Em 2021, o percentual caiu para 73,1%.

Houve mudanças também com relação ao regime disciplinar. Em 2014, 42,5% dos policiais eram favoráveis a extinção das punições administrativas e disciplinares. Em 2021, apenas 37,6% apoiam o fim das punições. Entretanto, 71,5% dos policiais ouvidos em 2021 concordaram que fim da prisão disciplinar contribui com a democratização dos regimentos disciplinares e com a proteção de direitos de seus integrantes.

Apesar das variações entre 2014 e 2021, os resultados mostram que não há consenso entre os policiais sobre a conveniência de se manter uma polícia militarizada. Isso acontece, provavelmente, porque também não há consenso sobre o que significa a (des)militarização.

Mais do que o uso de farda, insígnias e regulamentos, a militarização das polícias é, antes de tudo, um processo de construção de identidades profissionais. O que implica no pertencimento a um grupo de organizações que compartilham crenças, valores e saberes militares. Desta forma, a militarização diz respeito ao grau de identificação das polícias com o campo militar. Ela é, portanto, um gradiente, no qual as polícias podem se identificar em muitos ou poucos aspectos com as organizações militares, notadamente os Exércitos.

A desmilitarização, por sua vez, refere-se ao grau de diferenciação das polícias em relação ao campo militar. Para isso, é necessária a construção de uma identidade profissional própria que, além dos aspectos normativos, envolve também atributos, saberes e valores específicos desse grupo social. Em certa medida, a desmilitarização implica a profissionalização das polícias.

A existência de polícias militarizadas pode ser observada em diversos países, como a Gendarmerie francesa, os Carabineros espanhóis, os Carabinieri italianos, a Guarda Nacional Republicana de Portugal e os Carabineros do Chile. Originalmente, a estrutura, formação e regulamentos dessas polícias eram copiados dos respectivos Exércitos.

Entretanto, com o passar das décadas, esses países viram-se forçados a reformar suas polícias para adequá-las ao funcionamento dos regimes democráticos. De forma que as atuais polícias guardam apenas a simbologia e as tradições militares. Foram desenvolvidos novos manuais de doutrina e regulamentos internos, bem como houve profundas mudanças no modelo de formação profissional.

No fundo, o que aconteceu nesses países foi uma mudança na identidade profissional dos policiais. Se antes eles se percebiam fundamentalmente como militares, agora eles se definem principalmente como policiais. Mudou o balanço das identidades. Afinal podemos ter múltiplas identidades simultaneamente.

É disso que se trata. Desmilitarizar as polícias, na minha opinião, significa profissionalizá-las através da adoção de novos manuais, doutrinas, regulamentos e currículos. A manutenção dos símbolos e tradições militares não é necessariamente um problema, desde que o funcionamento das polícias passe a ser regido pelos saberes policiais e não mais por saberes militares.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES