Múltiplas Vozes 05/04/2023

Agora sabemos o que é terrorismo?

São curiosas e superficiais as fundamentações do Projeto de Lei nº 3283/2021. São propostos vários aumentos de pena e parte-se do pressuposto de que equiparar crime organizado, tráfico de drogas e constituição de milícia privada a terrorismo, que já é um conceito mal construído na legislação brasileira, seria capaz de intimidar grupos como o PCC

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Cristina Zackseski

Professora associada da Faculdade de Direito e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília

A aprovação do Projeto de Lei n. 3283/2021 na Comissão de Segurança Pública do Senado (CSP) em 28 de março de 2023 traz à tona importantes temas da política nacional e nos permite analisar o seu manejo no âmbito do Poder Legislativo Federal. Os temas são: as respostas espasmódicas desse poder ao problema criminal, as prioridades de pauta do Congresso e percepção de interesse público e privado, a atuação dos novos blocos parlamentares e a sustentação das proposições legislativas com estudos de instituições públicas.

A tramitação do PL nos conta uma história repetida. Proposto em 23 de setembro de 2021 pelo senador Styvenson Valentim (Podemos/RN), ele teve uma tramitação regular até seu colega de bloco parlamentar Sérgio Moro (União Brasil/PR) ser ameaçado, juntamente com seus familiares e “outras autoridades”, conforme o que foi divulgado sobre a Operação Sequaz da Polícia Federal, iniciada em 22 de março de 2023. No mesmo dia o senador Hamilton Mourão (Republicanos/RS), que pertence ao bloco parlamentar Vanguarda (PL, Novo), se manifestou no sentido de serem inaceitáveis as ameaças e sobre a necessidade de revisão da Lei de Terrorismo.

No dia seguinte (23/03/2023), o projeto foi incluído na pauta da CSP. No dia 28 de março foi aprovado e já designado relator na CCJ – senador Jorge Kajuru (PSB/GO), que faz parte do bloco parlamentar Resistência Democrática (PT, PSB, PSD).

Ou seja, em seis dias o projeto foi aprovado na CSP numa sessão em que estavam ausentes o interessado e o relator do projeto, senador Alessandro Vieira (PSDB/SE), pertencente ao mesmo bloco parlamentar Democracia (União, MDB, Podemos, PDT, Rede, PSDB). O senador Hamilton Mourão atuou como relator ad hoc.

São curiosas e superficiais tanto as fundamentações do projeto quanto as do parecer aprovado. São propostos vários aumentos de pena e parte-se do pressuposto de que equiparar crime organizado, tráfico de drogas e constituição de milícia privada a terrorismo, que já é um conceito mal construído na legislação brasileira, como demostra Gabriel Haddad Teixeira em sua tese de doutorado (Riscos e simbolismos do terrorismo e da guerra ao terror. Brasília: UnB, 2021), seria capaz de intimidar grupos como o PCC (Primeiro Comando da Capital).

A motivação é clara no sentido de proteger autoridades, o que se observa tanto na rapidez da tramitação depois da Operação Sequaz, quanto da própria redação do parecer, no qual se lê: “Notícias recentes demonstraram planejamento reiterado de facções para tirar a vida de autoridades públicas, notoriamente conhecidas pela defesa da segurança pública, e para promover a fuga de líderes das facções” (https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9299860&ts=1680039313146&disposition=inline – acesso em 01/04/23). Legisla-se abertamente em causa própria, mas essa intenção é diluída em afirmações sobre as pessoas que sofrem nas comunidades, a ousadia e o empoderamento dos grupos criminosos.

Mas o que é terrorismo mesmo? O primeiro parecer do senador Alessandro Vieira chega a incluir a palavra “políticas” entre as razões da conduta (https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9291995&ts=1680039313371&disposition=inline – acesso em 01/04/23), numa espécie de tentativa de corrigir a redação atual, que é precária, mas não é essa a versão final, nem muito menos a versão aprovada.

Uma inovação também curiosa é o aumento das multas para diversas condutas. Sobre isso é preciso que se diga que o sistema do Código Penal Brasileiro, no que tange à pena de multa, apresenta um patamar mínimo e máximo de 10 a 360 dias-multa, que não é igual a multa por dia, como consta de notícia publicada no site do Senado Federal https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/03/28/comissao-equipara-atos-do-crime-organizado-e-das-milicias-aos-de-terrorismo – acesso em 01/04/23.

Mesmo que a Lei de Drogas – que é uma lei especial, e, portanto, está fora do Código – tenha fixado outros patamares de dias-multa, essa distorção não pode ser naturalizada. O projeto de lei aprovado na CSP aumenta as penas de multa da associação para o tráfico, que atualmente já prevê de 700 a 1.200 dias multa, para 1.200 a 2.000 dias-multa, e da constituição de milícia privada (Art. 288-A do CP) para uma faixa de 2.000 a 3.000 dias-multa. Essa última conduta, cuja previsão legal original nem mesmo contém pena de multa, está dentro do Código, e o patamar da multa neste caso não pode ser alterado.

Além disso, o Código Penal estabelece em seu Artigo 91 a perda de bens, valores e produtos do crime em favor da União como efeitos da condenação, ainda que o Pacote Anticrime (Lei N. 13.964/19) de iniciativa do agora senador ameaçado, tenha complicado um pouco mais a aplicação deste tipo de resposta do sistema de justiça pelo acréscimo que fez com o Artigo 91-A, conhecido como confisco-alargado  (https://ibdpe.com.br/reflexoes-sobre-o-confisco-alargado-art-91-a-cp-dificuldades-praticas-incongruencia-legislativa-e-necessidade-de-limites-e-controle-jurisdicional/).

Como argumento geral, se existe algum estudo que comprova o efeito dissuasor de crimes pelo aumento de penas e, neste caso, também de multas, ele deveria ser conhecido e apreciado em seus aspectos conceituais e metodológicos. Meus estudos sobre as funções da pena, realizados desde meados da década de 1990, não identificam qualquer comprovação deste efeito mas, para não ser apenas autorreferente, lembro aqui da tese de doutorado de Carolina Costa Ferreira, que aponta justamente para a necessidade de Estudos de Impacto Legislativo para que proposições na área penal e processual penal sejam aprovadas (https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20344/1/2016_CarolinaCostaFerreira.pdf).

Trechos de relatórios das instituições citadas pelo parecerista do projeto estão descontextualizados. Quando menciona o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, chega a tratar da morte de Bruno Pereira e Dom Philips como “desaparecimento” e traz frases e dados que de alguma forma são sobre crime organizado, mas que não servem para sustentar as proposições contidas no projeto de lei. O texto poderia até mesmo ter sido escrito por certa ferramenta de inteligência artificial que, já sabemos, não apresenta confiabilidade.

O projeto agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Espera-se a sua completa rejeição pela falta de sustentação das proposições, pelo desencaixe das proposições no que tange às condutas já definidas nestas matérias – com pouca organicidade em relação ao conjunto das normas penais – e pelo nada que representaria em termos de prevenção do crime.

 

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