Múltiplas Vozes 26/06/2024

Abrigos para mulheres e crianças nas enchentes do RS

As violações dos direitos humanos das mulheres devem ser reconhecidas de acordo com as especificidades, sobretudo em contextos de excepcionalidade, para além do caráter universal conservador que reproduz as desigualdades estruturais que atingem as mulheres e as crianças, sobretudo as não brancas, pobres e periféricas

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Rowana Camargo

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestra em Ciências Humanas pela Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS (2018), integrante do GPESC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança Pública e Administração da Justiça Penal e do VMJUT/PUCRS (Direito à Verdade à Memória e Justiça de Transição)

A pandemia da covid-19, sobretudo no primeiro ano, colocou em debate a violência contra a mulher no âmbito doméstico, que aumentou significativamente em face do confinamento imposto, da imposição social de cuidado e do cumprimento de papéis atrelados à maternidade e ao feminino, que levou as mulheres a serem demitidas (ou pedirem demissão) para cuidarem dos filhos e de outros familiares, assim como a dificuldade na comunicação de crimes, tendo em vista o fechamento de delegacias e outros reflexos impostos pelo lockdown.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, as chamadas para o número 190, denunciando violência doméstica, saltaram de 596.721 em 2019 para 694.131 em 2020. A pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 3ª edição – 2021” do FBSP, constatou que 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirmou ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses durante a pandemia, o que significa que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual naquele período.

Foram criados mecanismos para auxiliar as mulheres, como a campanha CNJ e da Associação dos Magistrados Brasileiros que lançaram, em junho de 2020, a campanha “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”, que foi o primeiro resultado prático do grupo de trabalho criado pelo CNJ para elaborar estudos e ações emergenciais voltados a ajudar as vítimas de violência doméstica durante a fase do isolamento social. No mesmo mês, no Rio Grande do Sul, foi lançada a campanha “Máscara Roxa” que consistia na possibilidade de mulheres denunciarem casos de violência doméstica em farmácias que tivessem o selo “Farmácia Amiga das Mulheres”, durante o período de isolamento social.

Não se pretende uma hierarquização das violências, mas deixar claro que às mulheres são dirigidas agressões resultantes de uma cultura misógina e machista – além de outros marcadores interseccionais como raça, classe, idade etc. – que estruturam a sociedade brasileira. Assim, se as violências detêm especificidades, a resposta e as ações estatais devem guardar relação com essa realidade. Trazer à discussão as violências agravadas em razão do gênero nos mostra que, independentemente de se tratar de crise climática ou de outra ordem, as mulheres são atingidas de forma diversa – mais gravemente – e que, no Brasil, seguidamente estamos diante de repetições.

As enchentes de maio de 2024 no RS escancaram novamente como a violência de gênero pode ser agravada em situações excepcionais. Milhares de pessoas desabrigadas foram acolhidas em ginásios que, de forma improvisada, serviriam de casa por tempo indeterminado. Homens, idosos, mulheres e crianças vivendo sob o mesmo teto, sem paredes, sem privacidade, sem sequer se conhecerem.

A existência de parentesco ou amizade não impede a violência sexual contra a mulher. Pelo contrário: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, ano que registrou o maior número de estupros da história, 74.930, 68,4% ocorreram na residência da vítima e 88,7% das vítimas são do sexo feminino. Se o vínculo afetivo não é suficiente para impedir essa violência, pode-se presumir que a coabitação nos abrigos, mesmo que temporária, é capaz de promover maior vulnerabilização das mulheres e crianças.

Ao final da primeira semana da tragédia climática que assolou o RS, as denúncias começaram a surgir. Mulheres, adolescentes e crianças estavam sendo vítimas de assédios e estupros. Não é possível indicar exatamente o número de casos, primeiro pela ausência de uma compilação desses dados e, em segundo, pela cifra oculta que sempre permeia esse tipo de violência.

As denúncias resultaram na criação de abrigos destinados exclusivamente para mulheres e seus filhos/as em várias cidades: Porto Alegre, Viamão, Canoas, Novo Hamburgo, Santa Cruz do Sul. Alguns foram criados pela iniciativa da DPE, MP, prefeituras e outros exclusivamente por ONGs e organizações da sociedade civil. O ponto é que os abrigos refletem o que ocorre na sociedade, ou seja, as violências que ocorrem cotidianamente, principalmente contra determinados grupos – mulheres, crianças, população LGBT, população negra – são reproduzidas dentro desses espaços coletivos.

As especificidades atreladas ao gênero vão desde a necessidade de absorventes, remédio para cólica, anticoncepcional, atendimento às gestantes, até a constatação de que a violência contra elas direcionada deriva substancialmente do sistema desigual de gênero que estrutura a sociedade. A pandemia da covid-19 lançou luz a essa questão e, talvez, tenha sido a primeira vez que efetivamente esse debate tenha ganhado relevância. Principalmente desde 2020, relatórios e análises têm sido produzidos, levando à conclusão de que a vitimização das mulheres e de outros grupos minorizados ocorre de forma diversa nesses momentos.

Em março de 2021, o relatório “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira” produzido pela ONU Mulheres Brasil destacou, dentre tantas questões, que o contexto de profundas desigualdades estruturais, o aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos tornam as mulheres mais expostas a adversidades que os homens.

Em dezembro de 2023, na conferência climática da ONU, COP28 em Dubai, a ONU Mulheres lançou seu relatório “Feminist Climate Justice: Um modelo para ação”, pedindo uma nova abordagem de justiça climática feminista, já que as mudanças climáticas empurram milhões de mulheres para a pobreza, agravam as vulnerabilidades e as desigualdades. A mudança climática não tem gênero neutro, atua como um multiplicador de riscos de desigualdade de gênero, e as consequências são ainda mais graves e visíveis na intersecção das desigualdades.

Depois do Furacão Katrina, em 2005, de acordo com um estudo feito pelo Centro de Combate à Violência Sexual da Lousiana e o Centro Nacional de Recursos contra a Violência Doméstica dos EUA, foi registrada uma verdadeira epidemia de abusos sexuais em abrigos contra mulheres e crianças. A calamidade pública resultante de desastres climáticos acaba ofuscando consequências mais veladas, sobretudo a violência baseada em gênero, que geralmente já é invisibilizada.

Assim, o movimento que cresce é pela criação de um protocolo com perspectiva de gênero destinado a mulheres em situações de desastres climáticos que, segundo especialistas, devem se repetir com mais frequência. É preciso reconhecer que, num contexto de instabilidade socioeconômica, as desigualdades estruturais de poder, as falhas na segurança e na proteção das mulheres e crianças são intensificadas nos contextos de excepcionalidade.

A pandemia da covid-19 e outras tragédias climáticas que já assolaram o Brasil, somadas a essa terrível enchente que atingiu o RS em maio de 2024, revelam que não é a primeira vez que mulheres são vitimizadas em razão do gênero. As violações dos direitos humanos das mulheres devem ser reconhecidas de acordo com as especificidades, sobretudo em contextos de excepcionalidade, para além do caráter universal conservador que reproduz as desigualdades estruturais que atingem as mulheres e as crianças, sobretudo as não brancas, pobres e periféricas.

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