A vocação comunitária das Guardas Municipais
As Guardas Municipais não devem ter como foco a repressão pura e simples da criminalidade em geral. Elas podem, e devem, ocupar posição bastante relevante no sistema de segurança pública centrada na PROTEÇÃO da comunidade
Luis Flavio Sapori
Professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
As Guardas Municipais já estão consolidadas institucionalmente como órgãos integrantes do sistema de segurança pública. Não há mais dúvida quanto a isso. Atribuições típicas de polícia ostensiva estão reconhecidas legalmente, conforme consta no Decreto Presidencial nº 11.841, de 21 de dezembro de 2023. No artigo 2° afirma-se que as Guardas Municipais “poderão realizar patrulhamento preventivo, sem prejuízo das competências dos demais órgãos de segurança pública federais, estaduais e distritais.” Além disso, no artigo 5° está estabelecido que as Guardas Municipais poderão realizar a prisão em flagrante dos envolvidos em ocorrências que configurem ilícito penal, como também poderão apresentar o preso e a correspondente notificação circunstanciada da ocorrência à polícia judiciária competente para a apuração do delito e contribuir para a preservação do local do crime. Em suma, as Guardas Municipais podem ser definidas como Polícias Municipais.
Trata-se de inegável ganho para o aparato da segurança pública desde que evitem o “canto da sereia” de ocuparem espaços já hegemonizados pelas Polícias Militares. Não é desejável que as Guardas Municipais criem estruturas organizacionais especializadas no enfrentamento do tráfico de drogas ou mesmo da criminalidade violenta, por exemplo. Ao fazê-lo, estariam constituindo grupamentos com treinamento especializado, além de fardamento e armamento característicos de forças táticas típicas das polícias militares. Tal isomorfismo institucional tende a fomentar focos crônicos de conflitos na delimitação de competências do policiamento ostensivo nas cidades que é atribuição prioritária das polícias militares.
Além disso, há o risco concreto da institucionalização de uma cultura organizacional pautada pelo viés meramente repressivo que tende a acentuar os abusos no uso da força física na ação operacional com eventual repercussão nos níveis de letalidade. Todo cuidado é pouco nesse sentido, reforçando a importância do fortalecimento de instâncias de controle interno e de controle externo das Guardas Municipais. Corregedorias sólidas e ouvidorias independentes são imprescindíveis.
As Guardas Municipais devem se pautar pelo princípio da integração com as demais organizações do sistema de segurança pública. As prerrogativas de policiamento ostensivo que lhes foram reconhecidas devem ser implementadas na perspectiva de cooperação com as Polícias Militares. O patrulhamento cotidiano das vias públicas deve ocorrer mediante prévio planejamento articulado e complementar ao realizado pelos policiais militares.
A vocação das Guardas Municipais não é a repressão pura e simples da criminalidade em geral. Elas podem, e devem, ocupar posição bastante relevante no sistema de segurança pública centrada na proteção da comunidade, conforme delineado na Lei 13.022/2014. Isso significa proteção escolar, que tem como foco a violência no ambiente escolar; proteção ambiental, que tem como foco as irregularidades cometidas contra áreas de proteção ambiental, especialmente as ocupações irregulares, a depredação ambiental e o despejo de entulhos; proteção do espaço público, que se faz mediante patrulhamento preventivo em praças públicas, nas imediações de escolas municipais e de unidades de saúde. É importante que as Guardas Municipais não descuidem da presença ostensiva nos postos de saúde, onde frequentemente ocorrem situações de conflitos entre usuários e funcionários.
Há uma janela de oportunidade para que as Guardas Municipais institucionalizem uma cultura organizacional essencialmente comunitária. Isso significa incorporar os princípios da mediação de conflitos e da disposição para interagir com as comunidades locais para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança. A prevenção social da violência deve ter também esse escopo, com grande potencial para atuar na prevenção da violência doméstica.
A institucionalização da cultura comunitária passa, necessariamente, pelo fortalecimento do setor de ensino da organização. É nessa dimensão que se consubstanciam os valores e práticas que conformam uma cultura organizacional sólida. Tanto a formação de novos quadros quanto a capacitação e treinamento do contingente já existente devem ser priorizadas.
Finalizo reforçando o argumento de que os rumos da definição da identidade institucional das Guardas Municipais é que estabelecerá os níveis de frouxa articulação do sistema de segurança pública no âmbito local. Se prevalecer o mimetismo com as polícias militares, conflitos de competência tendem a se acentuar. Se prevalecerem as dimensões comunitária e cooperativa, a segurança pública tende a ser articulada e fortalecida.