Camila Nunes Dias
Socióloga, professora da UFABC, pesquisadora visitante do IPEA, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça - SEVIJU, pesquisadora colaboradora do NEV e associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Fabrício Rosa
Policial Rodoviário Federal e Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás - UFG e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Juliana Melo
Doutora em Antropologia Social. Professora Associada 3 da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora do CIRS (Cultura, Identidade e Representações Simbólicas (CIRS) e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (LabGEPEN/UnB). Atualmente é professora convidada na Universidade de Bordeaux, França
Os elogios de Jair Bolsonaro ao notório torturador Coronel Brilhante Ustra expressam uma admiração por torturadores e pela tortura que permeia não apenas as preferências da extrema-direita, mas é normalizada para uma parcela muito mais ampla da sociedade, incluindo parte dos chamados setores progressistas. Da ditadura para a “democracia” há um deslocamento das justificativas morais para a prática da tortura, bem como dos corpos sobre os quais a tortura é tolerada: do perigo comunista à ameaça do crime, do corpo branco subversivo ao corpo negro bandido. Se a extrema-direita se orgulha em chamar de “heróis” os torturadores, setores “progressistas”, especialmente quando são posicionados como governo, muitas vezes optam pelo silêncio conivente ou pela negação cínica, formas diferentes de garantir que o expediente covarde, nefasto e perverso da tortura continue sendo prática corriqueira, regular e reiterada em nosso país, notadamente, dentro dos cárceres.
Ontem a Folha de S. Paulo trouxe mais uma reportagem relatando o que estamos cansados de saber: a tortura como política carcerária no Brasil, incluindo o uso de técnicas para quebrar os dedos de pessoas presas, detalhando – em textos e imagens – as barbaridades ocorridas regularmente como prática de gestão prisional no Rio Grande do Norte, Ceará, Pará, Roraima, Amazonas.
A intensificação de um modelo de gestão prisional pautado na prática sistemática de tortura de corpos majoritariamente negros está em processo de intensa experimentação desde o ano de 2017 no estado do Rio Grande do Norte. Grosso modo, o estado foi o laboratório desse modelo de gestão principalmente após o Massacre de Alcaçuz, que culminou no assassinato de 27 pessoas. Como reação, o governo solicitou a intervenção da Força Nacional em Natal e no sistema prisional.
O modelo de Intervenção Prisional adotado teve amplo acolhimento social e houve possibilidades para a implementação de técnicas novas no que tange à gestão dos corpos presos. Além de reformas espaciais (de modo a tornar a prisão mais impermeável às fugas, rebeliões e ao acesso a celulares), constituiu-se um regime disciplinar extremamente rígido, suspensão de banhos de sol e visitas íntimas, familiares submetidos a revistas vexatórias e ainda mais criminalizados, entre outras questões. Todavia, um dos aspectos mais evidentes, e que vem sendo denunciado por familiares e pelos relatórios do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura no estado nos últimos anos foi a adoção de uma pedagogia de controle dos presos que tem como um elemento central a técnica do “procedimento”. Em termos pedagógicos, o “procedimento” consiste em obrigar os presos a ficarem sentados por horas no chão (às vezes inclusive nus) com a cabeça entre os joelhos e as mãos na cabeça. Também devem ficar em silêncio absoluto sob pena de serem punidos com castigos coletivos. A técnica é complementada com a supervisão dos policiais penais que, sucessivamente, passam entre os presos com seus cassetetes quebrando-lhes os dedos.
Desde 2017 várias denúncias foram feitas no RN relativas a essas práticas de tortura, que se complementam com outras técnicas violadoras de direitos. De modo geral, testemunhos e fotos foram considerados “provas não válidas” por não cumprirem critérios jurídicos abstratos, sempre acionados para manter a seletividade penal vigente e dar continuidade à prática da tortura como política carcerária. A despeito do amplo conhecimento já produzido e divulgado a respeito das práticas de tortura no cárcere do RN, o que se observa é a sua expansão dentro do estado e para outros estados, se legitimando como modelo de política carcerária em âmbito nacional.
No final de maio de 2023 foi realizada inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a presença da Ministra Rosa Weber, em 19 unidades prisionais de Goiás. Na ocasião, relatório produzido por 22 juízes especialistas apontaram conclusões estarrecedoras, de fazer inveja a Torquemada: “prática sistematizada e normalizada de maus tratos” e um regime de “tortura endêmica”; uso de eletrochoque, bala de borracha e a presença de salas especialmente destinadas à tortura; funcionamento da maioria dos estabelecimentos em regime de superlotação, com celas precárias e escuras, sem ventilação e sem energia elétrica; queixa generalizada de fome; unidades onde o banho de sol é permitido apenas duas vezes por semana e por somente duas horas; oferecimento de água suja e racionada, unicamente duas vezes por dia, durante uma hora; procedimentos administrativos disciplinares verbais, ou seja, sem registros escritos; pena cumprida quase integralmente em regime fechado, com impossibilidade fático-burocrática de progressão de regime; advogados submetidos a expedientes que impedem o cumprimento de suas atribuições; contato com advogados e familiares em visitas que duram 20 minutos, sendo, em alguns locais, realizadas apenas virtualmente; impossibilidade de acesso a livros, dentre inúmeros outros descalabros que podem ser visualizados no relatório disponível no site do CNJ.
A Associação dos Familiares e Amigos das Pessoas Privadas de Liberdade do Estado de Goiás, a Pastoral Carcerária, a Ordem dos Advogados do Brasil e outras associações, já vinham denunciando esses infortúnios no sistema prisional goiano. Há tempos eles expõem publicamente que presos são permanentemente torturados e maltratados e que existem casos em que alguns emagreceram 40 quilos devido à carência alimentar. Além disso, apresentam casos de presos que se alimentam de sabão em pó, papel e casca de banana para não morrer de fome.
A situação se agrava com a posição do atual diretor do sistema prisional de Goiás que chegou a incentivar tais práticas violadoras, segundo divulgado pelo jornal El País. De acordo com a reportagem, ele gravou áudio confessando que “já pisou em preso”, “já deu murro na cara”, e que é “bancado” pelo governo estadual para cometer tais violações. Na gravação, ele admite que emprega irregularmente equipamentos não letais, como bala de borracha, e também assume que já foi denunciado 127 vezes no Disque 100. Dessas denúncias, 19 viraram sindicância que não geraram responsabilização eficiente; nos áudios ele ameaça servidores que porventura revelem malfeitos cometidos por policiais penais, afirmando que é um “candidato a matar um agente do sistema”, convidando supostos delatores para uma “troca de tiros tipo faroeste”. Após a divulgação dos áudios, 140 organizações de proteção dos direitos humanos assinaram, em vão, manifesto pedindo seu afastamento.
Diante de todas essas atrocidades que são trazidas à luz pelas entidades de fiscalização e pelos familiares das vítimas desses crimes estatais, ora num estado, ora em outro e que são estruturais e derivam mesmo da tortura como prática de gestão prisional no Brasil, era de se esperar que um governo recém-eleito com a bandeira do combate ao racismo, à intolerância e à violação de direitos pudesse protagonizar alguma resposta à barbárie criminosa que opera em muitos presídios brasileiros. Todavia, a resposta que o governo federal tem dado aos crimes acima descritos são: 1. a negação cínica, como a do MJSP, ao afirmar em nota que em suas averiguações não foram encontrados indícios de tortura; 2. o ensurdecedor silêncio conivente do Ministério dos Direitos Humanos, cuja única manifestação pública sobre sistema carcerário foi relacionada aos brancos presos pelos ataques criminosos de 8 de janeiro; 3. a contribuição direta à prática da tortura como aquela dada pelo MJSP, fornecendo seus instrumentos, através das liberações de alguns milhões de recursos públicos para a compra de armamentos letais e não letais como resposta à violência que eclodiu no RN no mês de março e que visava justamente chamar atenção para a tortura nos cárceres potiguares.
Respostas incompatíveis com um governo eleito com a promessa de adotar uma política antirracista, com diversidade e garantia de direitos a todos os segmentos da sociedade. Se o racismo no Brasil pudesse ter uma só imagem que o representasse, é certo que essa imagem seria a de uma prisão. Assim, a retórica e o simbolismo da pluralidade adotados pelo atual governo são insuficientes para alterar a marca trágica, perversa e inexorável que o racismo impõe aos corpos negros encarcerados, mutilados e torturados. A narrativa de um governo antirracista tomba no exato momento em que esse mesmo governo nega, silencia e contribui, de forma direta ou indireta, para dar continuidade à política carcerária adotada no Brasil que faz a alegria dos admiradores de Ustra e mantém viva a chama de suas práticas de “combate ao mal”.