Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na quarta-feira, 25 de maio, em Umbaúba, Sergipe, três policiais rodoviários abordaram Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, por não usar capacete enquanto guiava uma motocicleta. Genivaldo padecia de transtornos mentais e teve que ser contido pelos policiais. Algemado e amarrado, foi colocado no porta-malas da viatura. Na sequência, os policiais rodoviários jogam spray de pimenta e gás lacrimogêneo e fecham o compartimento enquanto ele se debate. Genivaldo não resistiu e faleceu. No boletim de ocorrência, os policiais registraram que o homem teve um “mal súbito” no trajeto para a delegacia.
Entretanto a versão oficial logo foi desmentida pelas imagens feitas por populares que filmaram a abordagem. As imagens mostram os policiais lançando spray de pimenta e gás lacrimogêneo, enquanto o motociclista se debatia, com as pernas para fora da viatura. O laudo médico apontou que Genivaldo morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda.
Pressionado a se manifestar sobre o caso, o presidente Bolsonaro inicialmente se referiu a Genivaldo como marginal. Depois da divulgação das imagens, Bolsonaro voltou atrás, mas ainda assim tentou diminuir a gravidade do episódio. Chamou-o de incidente lamentável. Segundo ele, o caso será resolvido “sem exageros e sem pressão por parte da mídia que sempre tem lado, o lado da bandidagem”.
Bolsonaro não compreendeu que a relação entre a mídia e a polícia mudou radicalmente com a popularização dos aparelhos celulares capazes de gravar imagens. Até então, as polícias eram as principais fontes de informação dos jornais e televisões. Em geral, prevalecia a versão dos policiais sobre os acontecimentos. Isso não acontecia por despreparo ou ingenuidade dos veículos de mídia. Ocorria por interesse e conveniência dos editores e comandantes de polícia. Afinal de contas, os jornais e televisões precisavam da colaboração dos policiais para cobrir operações policiais e investigações criminais. E os comandantes precisavam da mídia para difundir a imagem dos policiais heróis lutando contra o crime.
Essa relação de cooperação entre polícia e mídia tem sido alterada. Surgiram novas fontes de informações para a cobertura do crime e da polícia. As novas mídias têm permitido que moradores produzam e difundam imagens sobre crimes e, principalmente, sobre a atuação das polícias. Assim, surgiram outras narrativas sobre os fatos que desafiam a hegemonia dos relatos policiais.
O surgimento de estatísticas sobre os crimes, as vítimas e o trabalho da polícia também têm mudado a cobertura da mídia. As estatísticas não produzem uma contranarrativa, mas um novo enquadramento, uma vez que colocam em perspectiva a frequência, a importância e o risco dos fatos narrados.
A emergência de novas fontes e novos enquadramentos têm transformado a relação entre a mídia e a polícia. As críticas da mídia ao trabalho policial, cada vez mais frequentes, têm gerado distanciamento e seletividade. Policiais fazem “greve de notícias” e passam a escolher os jornalistas com quem pretendem cooperar. Os profissionais de mídia, por sua vez, podem escolher quais fontes irão usar e qual enquadramento será produzido.
As imagens da abordagem de Genivaldo lembram muito as da morte de George Floyd, homem negro morto pela polícia de Minneapolis (EUA) em 2020 depois de ser imobilizado com joelho no pescoço. Nas duas situações, os policiais abordaram cidadãos com sadismo e indiferença. Tanto Genivaldo quanto Floyd morreram asfixiados por ação de policiais. Nos dois casos, a versão oficial da polícia foi desmentida pelas imagens feitas com aparelhos celulares.
Mas as semelhanças param por aí. Nos EUA, a morte de Floyd deflagrou uma onda de protestos por todo país. Movimentos sociais foram para as ruas protestar e exigir mudanças nas práticas policiais. Políticos, militares de alta patente, juízes, promotores e até mesmo policiais protestaram publicamente sobre o evento. A mobilização social levou o então candidato à presidência Joe Biden a elaborar um ambicioso projeto de reforma nas polícias.
Aqui no Brasil nada disso ocorreu. O caso de Genivaldo provavelmente será esquecido. Talvez os policiais sejam demitidos e condenados. Mas nada nos leva a crer que haverá mudança nas práticas violentas, arbitrárias e ilegais das polícias brasileiras. Parece prevalecer a ideia de que existe um dilema entre lei e ordem. Muitos acreditam que o cumprimento da lei e o respeito às garantias individuais previstas na constituição seriam barreiras para que os policiais atuassem na manutenção da ordem e no controle da criminalidade. É um falso dilema. Nas modernas democracias, a manutenção da ordem e o controle da criminalidade devem estar circunscritos aos limites estabelecidos pela lei.