Múltiplas Vozes 18/09/2024

A rastreabilidade e o conceito de “follow the product”

Um grande desafio da atualidade é blindar a economia formal e os mercados legítimos contra a economia do crime, sob pena de perdermos setores estratégicos da economia de forma irreparável

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Jorge Pontes

Ex-delegado da PF, Superintendente Regional em Pernambuco, Diretor da Interpol e pioneiro da repressão aos crimes ambientais na instituição; é formado pela Academia do FBI, pós-graduado em Criminal Justice pela Universidade de Virginia, membro do Comitê Executivo da Interpol em Lyon, adido em Paris. Presidente da Bridging Consultoria

Faltando menos de um mês para as eleições municipais, o tema segurança pública foi assinalado – segundo as pesquisas Quaest – como o principal problema por moradores de sete das dez mais populosas capitais do país. Esse estado “sensorial” da nossa sociedade, que oscila entre a agonia e o desespero, não é bem uma grande novidade.

Aliás, como bem pontuou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em voto recente proferido sobre matéria penal, o Brasil estaria vivendo um momento de verdadeira epidemia de criminalidade. Portanto, como vítima de uma situação “epidêmica”, é compreensível que a sociedade brasileira priorize as soluções de tais questões, que, de contornos tão críticos e duradouros, já se estabeleceu – no imaginário da população – como uma crise de natureza crônica.

E o ministro Barroso foi didático na elaboração de seus argumentos sobre esse fenômeno. Segundo ele, tal epidemia estaria ocorrendo em três níveis, no edifício da delinquência: (1º andar) os crimes de rua, ditos comuns: estupros, roubos à mão armada, homicídios etc.; (2º andar) a criminalidade organizada das facções, das quadrilhas do tráfico de armas e de drogas, e, por último, (3º andar) a criminalidade do colarinho branco, com viés organizacional na oficialidade, perpetrados por agentes públicos e políticos “nucleares” – que denominamos crime institucionalizado.

Essa situação de avanço da criminalidade vem impondo algumas ameaças e desafios, mormente no que diz respeito aos delitos cometidos no 2º andar do nosso edifício (crime organizado).

A propósito, recente estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Esfera Brasil contabiliza a presença ativa de 75 facções criminosas em território brasileiro, atuando não apenas no tráfico de drogas, mas em roubo de cargas, comércio ilegal de madeira, mineração e nos setores de combustíveis, cigarros e bebidas.

E a atuação das polícias confirma que grupos e facções que operam em alguns estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Paraná (em especial facções e milícias) vêm, nos últimos anos, realmente avançando suas atividades sobre mercados importantes, como os de fármacos, combustíveis, cigarros, bebidas e construção civil.

Se não reagirmos agora, de forma eficaz e eficiente, para revertermos essa situação, testemunharemos um inevitável processo de “calcificação” da presença e das posições do crime organizado em setores estratégicos da economia, em importantes centros e regiões do país.

Essa situação nos impõe o grande desafio da atualidade, que é blindar a economia formal e os mercados legítimos contra a economia do crime, sob pena de perdermos setores estratégicos de forma irreparável.

Por conta desse perigo – e principalmente pelo fato de estarmos em meio a uma “epidemia de criminalidade” – precisamos embutir medidas “anticrime by design” em todas as políticas, de todos os setores da administração pública.

As áreas de saúde, de educação, de meio ambiente, de transportes, esportes, enfim, todas as pastas, quando planejarem suas políticas devem, necessariamente, pensar nos potenciais impactos (na criminalidade) a serem gerados por seus projetos. Trata-se do anticrime by design.

Nessa mesma toada, temos também que ter cautela quando adotamos modelos fiscais sem prever os efeitos que possam ser gerados, inclusive como facilitadores da criminalidade. Algumas inovações tributárias – como a autodeclaração – incapacitam o Estado de rastrear produtos industrializados e acabam funcionando como verdadeiros convites à sonegação, que por sua vez trazem a pirataria, a falsificação e o descaminho, e, por conseguinte, atraem a criminalidade organizada com a oportunidade dos seus lucros fáceis.

E é aí que o conceito de rastreabilidade, o “follow the product”, passa a ser um dos grandes trunfos do enfrentamento aos malfeitos e às fraudes. Mormente em um cenário no qual as rotas utilizadas pelas organizações delituosas passam a ser um ativo tão relevante como os próprios produtos ilegais que por elas transitam.

Como já repetimos inúmeras vezes, o “follow the product” é uma aptidão fundamental, não apenas para a fase da investigação policial, mas, sobretudo, para inibirmos o cometimento de diversos crimes, como sonegação, pirataria e contrabando, entre outros, pois é justamente a partir da incapacidade de rastreio do poder público que os mercados se tornam convidativos para os desvios de conduta e as fraudes e, por conseguinte, para o crime organizado. Daí, incluir habilidades de rastreamento nos sistemas de controle de produção em geral significa atuar nas políticas fiscais com a ideia do “anticrime by design”, pois é assim que devemos proceder para não fomentarmos a delinquência.

Não é por acaso que uma das novidades do 18º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em agosto passado, foi a recorrência e a transversalidade do tema “rastreabilidade” – ou “follow the product” – em diversas palestras e painéis, durante os três dias do evento. Vários atores, de distintas instituições, mencionaram a necessidade urgente de consolidarmos projetos de polícia técnica que viabilizem o rastreamento de mercúrio, ouro, estanho, madeira e, também, produtos industrializados como combustíveis, bebidas, remédios e muitos outros.

E, por derradeiro, assim como para enfrentarmos a lavagem de dinheiro não podemos prescindir do estado para operarmos o “follow the money”, pois para tal existe um concerto de ações oficiais levadas a efeito por instituições como Banco Central, Receita Federal, Polícia Federal e COAF, entre outros, definitivamente não há como concebermos o “follow the product” sem a firme e exclusiva atuação governamental. Repassar essa obrigação – o ônus do controle fiscalizatório – para o próprio contribuinte seria vulnerabilizar o sistema.

 

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