Múltiplas Vozes 19/04/2023

A RAINHA VERMELHA

As "operações" da PM e da Guarda Civil Metropolitana, que espalham noias pela região central de São Paulo, parecem a corrida da personagem de Alice no País dos Espelhos, que precisa correr muito para se secar, mas passa sempre dentro d’água e se molha de novo

Compartilhe

Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Minha ideia era publicar um artigo sobre o policiamento no centro de São Paulo, mas fui atropelado pelos fatos. Na Sexta-feira Santa uma grande confusão foi registrada pelas câmeras. Multidões de noias invadiram e saquearam pelo menos uma farmácia e um mercado próximos à Cracolândia, eventos que não são exatamente corriqueiros, mas também nem um pouco imprevisíveis, visto que os comerciantes da região não ficaram surpresos com o ocorrido. E a maioria fechou suas lojas assim que teve início uma das constantes operações para dispersar os drogados.

A bagunça, porém, não começou aí. Há meses, sempre que a PM ou a Guarda Metropolitana faz uma das tais “operações” para dispersar os noias, a reação deles tem sido violenta. Normalmente jogam pedras nas viaturas, além de uma ou outra depredação de veículos incautamente estacionados em região próxima. E a situação agora é mais confusa, porque, desde março de 2022, quando a chamada “Operação” Caronte dispersou os acampados na Praça Princesa Isabel, não existe só uma concentração dos usuários de crack, mas umas três ou quatro, além da dispersão de pequenos grupos pelas áreas próximas.

Desta vez o tumulto adveio logo após o início da ação da Prefeitura de São Paulo, visando remover as tendas usadas para o tráfico de drogas nas ruas Conselheiro Nébias e dos Gusmões. Em uma ação, possivelmente combinada de antemão, os usuários de drogas se dividiram em dois grupos assim que viram as viaturas da Guarda Civil, que normalmente faz a segurança da equipe de limpeza.  Um desses agrupamentos se deslocou para a Praça Júlio Mesquita, onde saqueou uma farmácia. O outro grupo atacou um pequeno mercado na Avenida São João, a menos de meio quilômetro do outro ataque, o que evidentemente aumentou o número de comerciantes dispostos a fechar as portas definitivamente.

Esses tristes eventos serviram, novamente, para demonstrar que os órgãos municipais não têm uma verdadeira política para lidar com o fenômeno. Como também não tem o Estado. Não conseguem organizar uma ação que integre realmente as polícias Civil e Militar e a Guarda Metropolitana numa ação conjunta e permanente. Sim, permanente!

Essa mania de operações, coisas que normalmente têm um objetivo imediato, não funciona numa situação que é perene. Já se realizaram inúmeras delas nos últimos vinte e poucos anos e a única coisa que fazem é dispersar momentaneamente os noias, que depois tornam a se juntar em algum local a umas poucas quadras de onde foram expulsos. Repetindo o que já disse em outras ocasiões, quem pratica operações são cirurgiões. Polícia patrulha, previne ou investiga os crimes.

Além disso, nem só de polícia vivem as drogas. Para controlar minimamente a situação seria necessário congregar uma boa política de urbanização para a área (aliás para todo o centro paulista). E um atendimento médico/social mais efetivo para os drogados por toda a área metropolitana, o que diminuiria aos poucos o número de usuários que migram para a Cracolândia.

Voltando à questão policial, uma atividade que deveria ser constante é o enfrentamento aos traficantes que abastecem a Cracolândia. Segundo o que corre nas ruas, as drogas que abastecem o centro paulistano vêm, ou vinham, principalmente da Favela do Moinho, que é pequenina e bem próxima ao centro, e a de Heliópolis, uma das maiores de São Paulo. Como já devo ter mencionado em algum outro artigo, na região do Largo do Arouche, avenida São João e praça da República, a cocaína é oferecida como Lipa. O que, segundo o que corre nas ruas, significa cocaína provinda de Heliópolis. Em vários locais existem pequenas biqueiras móveis, que desaparecem uns dias quando a polícia dá uma batida; ou simplesmente mudam de local. Nessas biqueiras os traficantes não ficam em um local fixo, transitam pelas calçadas, falando lipa… lipa… Algumas vezes com o policiamento parado a menos de vinte metros. Mas isso é outra história, à qual voltarei oportunamente.

Já o crack não se sabe, pelo menos eu não sei, de onde vem, mas o trabalho policial nesse caso é o mesmo: identificar as fontes que o produzem ou armazenam e o itinerário por onde ele transita. Catalogando no mínimo gerentes, transportadores e locais onde é vendido. Obter provas e prender os envolvidos.

Duas argumentações contrárias a isso são de que essas investigações demoram muito e são difíceis de fazer. E concordo com as duas. Mas é o único trabalho que efetivamente pode diminuir o fluxo de drogas no médio prazo, muito mais do que qualquer “operação”. E o motivo é que com menor oferta o produto encarece, o que afasta alguns usuários. Outra medida necessária seria identificar os chefetes que atuam no local e que detêm o controle sobre grupos de usuários. Na prática são eles que dão as ordens para os noias agirem como escudo humano ou praticarem os atos de vandalismo. E às vezes, quando a situação está complicada, mandam se dispersarem e depois organizam um novo local de reunião.

Nos últimos parágrafos simplifiquei um pouco a hierarquia e a situação, é obvio que, como em qualquer interação social, a realidade tem várias nuances, não é homogênea. De qualquer forma só a investigação e o uso da inteligência criminal podem determinar quem, como e onde. Mas eu começaria por aí, pelos fatos conhecidos. Se você esperar ter todos eles na mão antes de agir, o trabalho não será iniciado nunca. E uma das chaves de uma boa estratégia é partir daquilo que se sabe, e depois ir mudando os alvos à medida que avança. O que não pode é continuar apenas com as “operações” de espalha que, embora às vezes sejam até necessárias, sem o devido planejamento e efetivo policial, só provocam o deslocamento dessas centenas de usuários e traficantes para outros pontos da região. Isso parece a corrida da Rainha Vermelha (Alice no País dos Espelhos): você deve correr muito para se secar, mas ao mesmo tempo passa sempre dentro d’água e se molha de novo.

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES