Profissão Polícia

A quem serve o militarismo na Segurança Pública?

O modelo militar não serve aos cidadãos e cidadãs que sofrem com o militarismo, principalmente os negros e as populações periféricas, porque as intervenções das Forças Armadas e das Polícias Militares só atingem um grupo social

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Nesta semana aproveito a liberdade ensaística que este espaço proporciona para apresentar mais dúvidas do que respostas a respeito de um aspecto importante sobre segurança pública que o artigo A Polícia Militar e seus dilemas identitários, de Arthur Trindade, trouxe acerca, entre outras importantes contribuições, do porquê o modelo policial preventivo e repressivo no Brasil ainda é militar. Trindade elenca alguns fatores que conduziram para a formação das polícias militares no Brasil e apresenta quatro dimensões (uso da força, mecanismo de supervisão e controle, formas de emprego e relações de trabalho) que as diferenciam das Forças Armadas Brasileiras no processo de construção dos aspectos do trabalho cotidiano e de uma identidade policial militar.

Todavia, fundamentando-me no artigo, inquieto-me pela parte introdutória em que apresenta segmentos importantes da sociedade que desejam a desmilitarização das polícias e que o debate não avança a ponto de formar uma agenda de governo. Se lideranças políticas, pesquisadores e especialistas, associações da sociedade civil, ONU, OAB, entre outros, desejam a desmilitarização, por que não há? Aliás, pelas características das atividades que estão se desenhando, acredito que está havendo uma militarização não formal das outras agências de segurança, como, por exemplo, das polícias civis e das guardas municipais. Assim, apresento notas ensaísticas para tentar contribuir com o possível debate que pode surgir da questão.

A primeira nota é que o modelo militar “serve” aos governantes dos estados. A legislação tem a possibilidade de manter um rígido controle sobre as ações policiais militares. A maioria das PMs utiliza o Regulamento Disciplinar do Exército ou arcabouço similar para controlas as condutas que não podem ser tipificadas pelo Código Penal e Penal Militar para manter a hierarquia e a disciplina. Questões trabalhistas são facilmente mantidas sob controle fundamentada pelo ethos guerreiro que arrisca a própria vida e em quaisquer condições e pelo regramento militar. Questões laborais não ultrapassam as rodas de conversas das praças. Cumprir várias missões também é uma “serventia” do militarismo, pois missão dada é missão cumprida. O rol de atividades é extenso e uma das ferramentas reivindicatórias da categoria no DF foi a criação em 2014 da Operação Tartaruga ou fazer somente o que é legal e de competência da Polícia Militar. Desta forma, atividades de competência da PCDF, DETRAN, entre outras deixaram de ser realizadas, assim como abordagens de verificação ou a suspeitos.

O militarismo na polícia também “serve” a divisão construída historicamente entre as Polícias Civis (PCs) vinculadas predominantemente ao Poder Judiciário e as Polícias Militares ao Exército. O inquérito policial simboliza o resultado do trabalho institucional e representa o capital cultural institucional. É o vínculo de comunicação de ato criminal com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A desmilitarização das polícias rompe com essa dicotomia policial e, ao se distanciar das Forças Armadas (FFAA), pode aproximar-se do Judiciário, dividindo capitais simbólicos e, possivelmente, culturais e sociais. As PMs fazem inquéritos militares e algumas confeccionam o Termo Circunstanciado, portanto já há um capital cultural acumulado e um vínculo como atalho construído pelas PMs sem a mediação das PCs, todavia, com a desmilitarização o atalho pode tornar-se um caminho direto, como o ciclo completo da atividade policial.

O modelo militar também “serve” às FFAA, em especial ao Exército Brasileiro, porque mantém mobilizado e subordinado o efetivo de 406 mil policiais militares e mantém uma relação reflexiva com as FFAA sendo atores políticos e até protagonistas no campo da política de segurança pública do país. As Operações de Garantia da Lei e da Ordem, que seriam para momentos de exceção, se tornaram regra de intervenção para momentos em que a Força Nacional seria o efetivo apropriado e especializado para auxiliar as unidades federativas. Serve também ao capital simbólico das FFAA, pois as relações hierárquicas saem dos espaços “privados” dos quartéis e permanecem no espaço “público” próprio do trabalho policial militar e as identidades militares se encontram e se subordinam, ou em raros casos entram em conflito, e as relações cotidianas estendem-se ao militarismo, inclusive a resolução de conflitos próprios do trabalho policial.

E, principalmente, “serve” à política de segurança pública. Como destaca Arthur Trindade no artigo, há uma diferença no uso e nos objetivos da força, principalmente a letal entre PMs e FFAA. Todavia, as políticas de segurança federal, estaduais e municipais, com rara exceção, são delineadas pelo combate e os indicadores construídos sinalizam como e qual resultado espera-se e está além das PMs. Está no sistema prisional, nas sentenças e nos ritos jurídicos, nos policiamentos e intervenções estatais mediadas pela cultura do controle e da morte. E o ethos militar é o melhor comburente para essas políticas e aquilo que estrutura esse sistema.

Além dessas notas, lógico que há outros atores políticos e econômicos aos quais o militarismo serve. Produtos e serviços são vendidos, políticos têm essa solução como plataforma, entre outras questões. Só não “serve” aos cidadãos e cidadãs que, no caso, sofrem com o militarismo, e geralmente é negra e periférica, porque as intervenções das FFAA e das PMs só atingem um grupo social, pois o outro tem imunidades institucionais que impedem esse relacionamento.

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