Múltiplas Vozes 10/07/2024

A Portaria que nunca foi implementada: reflexões sobre vitimização e Direitos Humanos para os Policiais Militares

A Portaria Interministerial nº 2 de 2010, que se propunha a apontar caminhos, metas e estratégias a ser alcançados e implementados no tocante aos Direitos Humanos dos profissionais de Segurança Pública, permanece longe da realidade

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Fábio Gomes de França

Pós-Doutor em Direitos Humanos, Doutor e Mestre em Sociologia pela UFPB. Capitão da PMPB e Professor de sociologia e criminologia do PPG do Centro de Educação da PMPB

Anderson Duarte Barboza

Oficial da PM do Ceará; Doutor e Mestre em Educação Brasileira pela UFC e Professor da Academia Estadual de Segurança Pública do Estado do Ceará (Aesp/CE)

Desde a redemocratização brasileira, especialmente a partir de 1988 com a Carta Constitucional, os estudos sobre as Polícias Militares (PMs), de modo geral, tinham a preocupação, entre outras, de demonstrar a permanência do “legado ou entulho autoritário” nessas instituições a partir da perspectiva militarista de sua organização e do modus operandi de seus agentes por meio de atos violentos considerados ilegítimos. Desse modo, dificilmente sobrou espaço para que as argumentações acadêmicas e manchetes jornalísticas pudessem destacar processos vitimatórios dos homens e mulheres trabalhadores da segurança pública que, por sua vez, como qualquer outro cidadão, por mais que tenham de agir em circunstâncias que os colocam em posição de algozes da cidadania, para que mantenham a ordem pública, obviamente também não são poupados de serem vítimas da violência, muitas vezes estatal, que atinge a todos nos seus mais diversos aspectos, seja na dimensão física, psicológica ou moral.

Nesse sentido, em anos recentes, a vitimização policial militar passou a ser tema de muitos pesquisadores, políticos – estes nem sempre seriamente comprometidos –, bem como da imprensa. Fenômenos como o homicídio e o suicídio de policiais, ou até mesmo o assédio moral, sexual e a homofobia nas casernas, assuntos antes tratados como tabu pelas próprias instituições, ganharam notoriedade na era das redes sociais, fazendo com que a sociedade tomasse conhecimento de como essa categoria profissional não poderia ser vista apenas como violadora dos Direitos Humanos em alguns aspectos, mas também possuidora desses mesmos direitos. Mesmo que casos de erros na atuação de PMs sejam uma realidade, não deixa de ser verdade que a herança pela visão negativa construída em torno da imagem desses agentes do Estado durante algum tempo dificultou a visão de que eles também sofrem inúmeras formas de desrespeito tanto nas relações interna corporis como no contato com a sociedade de um modo geral. Claro que, quando vamos nos posicionar, tendemos a adotar a perspectiva dos mais fracos e vulnerabilizados, até mesmo como uma questão de consciência moral, mas é preciso reconhecer também que os PMs não são robôs ou seres “superiores ao tempo”, como sua cultura institucional ideologicamente faz crer, pois não passam de pessoas que também sofrem com as consequências das dinâmicas e processos sociais que os vitimizam.

Foi nesse sentido que os autores deste texto lançaram, em 2017, o artigo intitulado “Soldados não choram?: reflexões sobre direitos humanos e vitimização policial militar”, pela Revista do Laboratório de Estudos da Violência da Unesp, de Marília. O objetivo central do texto foi destacar a existência, até aquele momento, da Portaria Interministerial nº 2, de 2010, a qual “está dividida em 14 eixos que fazem referência a 67 diretrizes que apontam caminhos, metas e estratégias a serem alcançados e implementados no tocante aos Direitos Humanos dos profissionais de Segurança Pública” (França; Duarte, 2017, p. 12). A Portaria, até hoje, não foi revogada.

O foco do artigo foi, em meio aos muitos eixos e diretrizes da Portaria, destacar e analisar apenas cinco deles, a partir de uma argumentação que esboça, segundo a interpretação dos autores, um tipo de vitimização profissional pautada em três dimensões: a objetivo-moral, a subjetivo-moral e a estrutural. Esta classificação, de certa forma, e a construção teórica do próprio artigo deixam isso claro, ampliam o debate sobre o tema que até aquele momento focava a caracterização da vitimização da PM talvez de um modo um tanto solto, que ainda demandava demonstrar os aspectos institucionais internos e aqueles externos. As três categorias demonstradas enriquecem o debate ao esmiuçar o entrelaçamento de uma composição organizacional que fomenta regulamentos morais e moralidades regulamentadas, em um misto que promove e alimenta um poder administrativo de comandantes e o comportamento de pares entrelaçados por visões de mundo conservadoras que naturalizam fenômenos como o assédio moral e o preconceito em suas diversas formas, como a homofobia e a misoginia.

Logo, na dimensão objetivo-moral, os autores mostram os paradoxos dos regulamentos militares e colocam como exemplo que, em um dos eixos da Portaria sobre “Direitos constitucionais e participação cidadã”, temos a diretriz que busca “Assegurar o exercício do direito de opinião e a liberdade de expressão dos profissionais de segurança pública, especialmente por meio da Internet, blogs, sites e fóruns de discussão, à luz da Constituição Federal de 1988”. No entanto, nada é mais ilusório de se pensar, destacadamente no momento atual, no qual as corporações têm se mobilizado em criar normativas internas para filtrar e dificultar o uso das redes sociais pelos profissionais PMs, sem dúvidas em grande parte pelo medo que os superiores hierárquicos têm de serem expostos publicamente por suas ações autoritárias tomadas nos cotidianos dos quartéis, já que os regulamentos e o próprio código penal militar garantem que é proibido aos subordinados censurar e/ou criticar atos de seus superiores hierárquicos.

Na dimensão subjetivo-moral, os autores mostram como a Portaria também não alcança a realidade dos fatos, pois diz respeito à realidade das relações sociais cotidianas. Na diretriz 11, a Portaria destaca “Garantir respeito integral aos direitos constitucionais das profissionais de segurança pública femininas, considerando as especificidades relativas à gestação e à amamentação, bem como as exigências permanentes de cuidado com filhos crianças e adolescentes, assegurando a elas instalações físicas e equipamentos individuais específicos sempre que necessário”. E a diretriz 13 resulta em “Fortalecer e disseminar nas instituições a cultura de não discriminação e de pleno respeito à liberdade de orientação sexual do profissional de segurança pública, com ênfase no combate à homofobia”. Não se conhece em nenhuma PM brasileira qualquer programa específico que partiu da própria instituição e que seguiu a Portaria para estabelecer políticas internas de combate à misoginia e à homofobia. Lentamente, foi o STF que, em 2024, tomou as rédeas para assegurar o processo democrático, obrigando as PMs a realizarem concursos de ingresso na carreira policial com ampla concorrência, já que eles eram realizados geralmente com uma porcentagem entre 10% e 25% de vagas para o público feminino por meio de normativas internas inconstitucionais.

Por fim, a terceira dimensão, chamada de estrutural, volta-se para a ausência de garantias ao bem-estar de profissionais que arriscam suas vidas na lide diária da profissão, cuja realidade ainda continua contrariando a Portaria, com a não-criação e ausência de programas providos pelas instituições PM que assegurem saúde, moradia, lazer, dignidade e reconhecimento aos profissionais. Que o digam aqueles que se tornam deficientes físicos quando vítimas de armas de fogo, que, por terem perdido seus corpos úteis para a instituição, seus “corpos-arma”, tornam-se, em sua maioria, esquecidos por colegas e comandantes, passando a viver um ostracismo existencial que os condena à marginalização social.

A Portaria indica caminhos na busca da valorização e dignidade humana, mas a realidade mostra outro quadro, demonstrando ser urgente a sua aplicação integral. Nós, os autores deste artigo, mesmo após catorze anos desde a sua publicação, torcemos pelo seu fortalecimento.

 

REFERÊNCIA

 

FRANÇA, Fábio Gomes de; DUARTE, Anderson. “Soldados não choram?: reflexões sobre direitos humanos e vitimização policial militar. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da Unesp/Marília, v. 19, n. 19, p. 1-22, maio/2017. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/levs/issue/view/421

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