A Polícia Rodoviária Federal na burocracia do Estado
A conexão entre atores da corporação e burocracia pode figurar como um elo entre policiais interessados em acumular capital político – seja para qual for o objetivo final de uso desses capitais – e os interesses políticos de partidos, caciques e, por vezes, de candidatos à presidência da República pouco preocupados com o histórico democrático da instituição
Lucas e Silva Batista Pilau
Doutorando em Ciência Política na UFRGS, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Advogado
Nos últimos anos, foram acrescidas ao vocabulário do debate público e acadêmico terminologias que buscaram nominar e, ao mesmo tempo, fornecer explicações para as relações entre as polícias brasileiras e a política. “Radicalização”, “politização”, “policialismo” e “bolsonarização das polícias” talvez sejam as mais difundidas. Independentemente da forma como o fenômeno vem sendo designado, têm sido muitas suas facetas no cotidiano: de posicionamentos públicos de oficiais e delegados sobre a vida política a atuações que visaram proteger ou simplesmente deixar de agir sobre determinada parcela da população. Os eventos ocorridos em 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes em Brasília entrarão para a história como representativos dos efeitos nocivos do aprofundamento da conexão entre as corporações policiais e a política no país.
Há pouco tempo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) também adentrou no conjunto de organismos policiais que tiveram sua atuação colocada sob dúvida de intervenção política. Criada em 1928 para ser uma “polícia de estradas”, atualmente o órgão é responsável por mais de 70 mil quilômetros de rodovias e estradas federais e em março de 2022 contava com um efetivo de 12.324 policiais rodoviários[1]. Em 2022, a PRF esteve no centro de dois episódios que acenderam uma luz amarela aos mais atentos às movimentações da segurança pública no país: a chacina da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, e o assassinato de Genivaldo de Jesus, morto após uma abordagem de agentes do órgão por estar pilotando uma moto sem capacete no Estado de Sergipe.
Na gestão de Jair Bolsonaro no Executivo Federal (2019-2022), a PRF ganhou protagonismo político ao ser vista como uma corporação instrumentalizada e com poucas resistências institucionais (como a existência de um regimento interno) aos projetos de poder do ex-presidente da República. Em 30 de outubro último, no segundo turno das eleições presidenciais, realizou mais de 560 operações de fiscalização (na maior parte no Norte e Nordeste, essa segunda região conhecida como reduto eleitoral do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva) que prejudicaram eleitores que se dirigiam às seções eleitorais para votar e poderiam ter comprometido o direito ao voto de muitos outros[2].
Principalmente após esse episódio, muitas dúvidas pairaram sobre o comando do órgão e sobre os usos políticos aos quais poderia estar sendo submetido pela presidência da República – responsável diretamente pela atuação da instituição. E alguns fatores foram apontados para se compreender melhor o episódio das eleições de 2022: a) sua proximidade com o presidente da República e com o Ministro da Justiça; b) capacidade operacional de influenciar uma eleição que ocorre em nível federal; c) militarização da corporação, formação policial autoritária, fim das comissões internas de Direitos Humanos, centralização da governança, redução da atenção dedicada à segurança viária e fiscalização de trânsito e maior “politização” na escolha dos superintendentes[3]. Todos esses elementos só podem ser considerados sem descartar uma ampla parcela de policiais rodoviários federais que compõe a instituição e são firmes no propósito de servir a uma polícia de Estado, democrática e cidadã.
Para incrementar esse debate, considera-se fundamental verificar as vias de acesso da PRF com o alto escalão da política brasileira por meio da circulação de atores do órgão pela burocracia do Estado, adquirindo com isso poder (na forma de uma dominação legítima, como diria Max Weber) ou capitais burocráticos (como formula Pierre Bourdieu). Para tanto, foram coletados dados no Diário Oficial da União (DOU) sobre cessões e requisições de policiais rodoviários federais e agentes administrativos da instituição para outros setores do Estado brasileiro em nível municipal, estadual ou federal [4]. Antes de verificar para quais destinos os PRF’s foram cedidos/requisitados, o Gráfico 1 apresenta o quantitativo entre 2017 e 2021, demonstrando que o número de policiais cedidos/requisitados mais que dobrou entre o segundo ano do governo de Michel Temer e os três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro.
Gráfico 1: Quantitativo de cessões e requisições de PRF’s (2017-2021)
Fonte: Elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União.
Já o Gráfico 2 demonstra que o Governo Federal foi o campeão de destinos dos PRF’s no período analisado. Município, governos estaduais, Senado e Câmara dos Deputados e instituições judiciais (como Defensoria Pública, Ministério Público, Tribunais Eleitorais, entre outros) são destinos igualmente relevantes, mas muito menos representativos. Em todos esses destinos, os PRF’s atuaram como secretários parlamentares, assessores, diretores, especialistas, coordenadores e chefes de divisões.
Gráfico 2: Distribuição de PRF’s pela burocracia do Estado brasileiro (2017-2021)
Fonte: Elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União.
A Tabela 1 demonstra a distribuição dos PRF’s na estrutura do Governo Federal. Como se pode observar, 2017 é um ano com pouca circulação entre a instituição e o Governo Federal, enquanto em 2018 cresce o número de PRF’s com funções no Ministério da Justiça e Segurança Pública. No ano seguinte, esses atores seguem em direção ao MJSP, no entanto, com uma maior distribuição no Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos e na Presidência da República. Esse último destino, o MMFDH e o MJSP persistirão em 2020 e 2021 como os principais destinos dos PRF’s. Apesar de haver uma concentração nesses ministérios, os PRF’s demonstraram alguma capilaridade também no Ministério da Economia e no Ministério da Infraestrutura.
Tabela 1: Distribuição de PRF’s no Governo Federal (2017-2021)
Fonte: Elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União.
Observações: 1) Os destinos estão de acordo com as cessões e requisições das portarias lançadas nos diários oficiais consultados; 2) Alguns títulos foram abreviados para se ajustarem à tabela.
Assim, os dados evidenciam que a partir de 2017 só cresceu o contingente de policiais rodoviários federais que deixam a instituição para ocupar um cargo no Governo Federal – de apenas 7 para 33. Esses números não expressam uma debandada de agentes da instituição para cargos comissionados, principalmente se comparados aos membros das Forças Armadas. Segundo relatório do IPEA[5], ao analisar o período entre 2016 e 2020, os militares chegaram a ocupar mais de dois mil cargos comissionados em determinados anos na administração pública federal. Mas considerando as dúvidas que pairaram sobre a instituição em suas operações – principalmente no período das eleições presidenciais de 2022 – é preciso atentar para o simbolismo dessa conexão da corporação em termos de via de acesso e contato estreito com o Governo Federal, para o qual sua própria operacialização enquanto uma polícia federalizada responde constitucionalmente.
Nesse sentido, é central que a compreensão dessa ligação entre PRF’s e o Governo Federal passe pelo entendimento de que a entrada na burocracia através de cargos de confiança amplia alguns caminhos aos cedidos/requisitados. O cotidiano em Brasília permite o aprendizado do “fazer política”, por meio do contato direto com políticos profissionais e com os mecanismos de formulação de políticas públicas. Além disso, enquanto cedidos/requisitados, os policiais também acumulam contatos com atores de governos municipais, estaduais ou federais lotados ou com passagem por Brasília, que depois poderão ser reconvertidos em vagas do alto escalão de sua instituição ou mesmo em outras posições na burocracia e na política. Finalmente, e o que talvez seja o ponto mais crítico dessa interconexão, sempre existirá a possibilidade de adesão a projetos de espectros político-ideológicos pouco preocupados com o funcionamento das instituições estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 e com a própria democracia do país.
Apesar desse diagnóstico, não parece haver uma relação causal entre os caminhos disponíveis para os policiais que ocuparam cargos no governo e as dúvidas sobre a atuação da PRF nos episódios mencionados. O mais provável é que muitos dos PRF’s cedidos/requisitados possuam os conhecimentos “técnicos” dos cargos para os quais são designados na burocracia do Estado. Ainda resta apreender mais sobre essa realidade e entender, por exemplo, as motivações dessas cessões/requisições e como ocorrem na prática (requisitos, negociações, etc.). De qualquer forma, essa conexão entre atores da corporação e burocracia pode figurar como um elo entre policiais interessados em acumular capital político – seja para qual for o objetivo final de uso desses capitais – e os interesses políticos de partidos, caciques e, por vezes, de candidatos à presidência da República pouco preocupados com o histórico democrático da instituição.
[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2022. Ano 16, São Paulo, 2022. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. Acesso em 30 de janeiro de 2023.
[2] COSTA, Arthur Trindade Maranhão. A Polícia Rodoviária Federal foi instrumentalizada. Fonte Segura, 03 de novembro de 2022. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-policia-rodoviaria-federal-foi-instrumentalizada/. Acesso em 27 de janeiro de 2023.
[3] ROSA, Fabrício. A PRF é muito maior do que sua atual gestão. Fonte Segura, 17 de novembro de 2022. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-prf-e-muito-maior-do-que-sua-atual-gestao/. Acesso em 27 de janeiro de 2023.
[4] De um total de 180 cessões/requisições coletadas no DOU, 154 (85,5%) se referiam a Policiais Rodoviários Federais e 25 (14%) a Agentes Administrativos da Polícia Rodoviária Federal e 01 (0,5%) a Auxiliar Operacional de Serviços Diversos da Polícia Rodoviária Federal. Para facilitar a análise, todos serão referidos no texto como “PRF” ou “PRF’s”.
[5] IPEA. Presença de militares em cargos e funções comissionadas do Executivo Federal. Nota Técnica n.º 58, Setembro de 2022.