A Polícia Rodoviária Federal foi instrumentalizada
Ao contrário da Polícia Federal, que tem normas e regimento interno bem estabelecidos, a PRF ainda carece de um arcabouço capaz de assegurar a independência funcional dos inspetores. Assim, torna-se presa fácil para instrumentalização em favor de interesses políticos
Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nos últimos dias assistimos atônitos a ações e omissões por parte do ministro da Justiça, Anderson Torres, e do Diretor Geral da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques, que desafiam o Estado Democrático de Direito. As duas autoridades tiveram participação ativa em eventos que poderiam comprometer o processo eleitoral.
No domingo, 30, dia do segundo turno das eleições, a Polícia Rodoviária Federal realizou mais de 560 operações de fiscalização, a maior parte delas em municípios de estados do Norte e do Nordeste. A atuação da PRF deliberadamente prejudicou milhares de pessoas que se dirigiam às seções eleitorais para votar. As operações causaram filas e engarrafamentos enormes que atrasaram a chegada dos eleitores aos locais de votação.
A ação dos policiais rodoviários claramente teve motivação política. A quantidade de operações de fiscalização foi muito superior àquela verificada no primeiro turno. Os locais das operações também mudaram. No primeiro turno as operações se concentraram nas regiões Sul e Sudeste. Agora, no segundo turno, foram realizadas majoritariamente no Norte e Nordeste, regiões de forte concentração de votos no candidato da oposição.
As operações de fiscalização contrariaram determinação do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Moraes havia proibido a Polícia Federal e a Rodoviária Federal de realizarem qualquer operação envolvendo o transporte público disponibilizado a eleitores, seja ele gratuito ou não, sob pena de responsabilização criminal dos diretores-gerais de ambas as corporações.
Em função disso, o Ministério Público Federal informou que irá investigar a conduta do diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal. Segundo os subprocuradores-gerais da República, Vasques é suspeito de “má conduta” na gestão da PRF, e possível desvio de finalidade visando a“interferir no processo eleitoral”.
Não bastasse a confusão no dia da votação que poderia comprometer seriamente a lisura das eleições, a Polícia Rodoviária Federal também se viu envolvida nos protestos que tomaram as rodovias brasileiras no dia seguinte à votação.
Dada as reiteradas manifestações de Bolsonaro, era previsível que haveria algum tipo de contestação das eleições em caso de derrota do presidente. Era de conhecimento público que grupos de bolsonaristas radicais iriam para o confronto, acreditando contar com o respaldo das FFAA e das polícias. Foi exatamente o que aconteceu a partir de segunda-feira, 31. Grupos de caminhoneiros bloquearam estradas em vários estados em protesto ao resultado das urnas. Os bloqueios trouxeram transtornos aos cidadãos e desabastecimento de alguns itens, especialmente medicamentos.
Obviamente os bloqueios não foram planejados na segunda-feira. Desde a semana anterior, os serviços de inteligência do Ministério da Justiça e da Polícia Rodoviária Federal tomaram conhecimento de conversas e mensagens do planejamento dessas ações.
Apesar disso, nem o ministro da Justiça nem o diretor-geral tomaram providências para mitigar as consequências dos bloqueios. Não foram convocados mais policiais rodoviários para atuar as operações de desobstrução de rodovias. Não foi realizada articulação com os governos estaduais para apoiar os trabalhos da PRF. Tampouco foi instaurado com a antecedência necessária o Centro Integrado de Comando e Controle Nacional destinado a coordenar as ações das forças federais e estaduais.
Os eventos dos últimos dias revelam o uso político da Polícia Rodoviária Federal que tem sido feito pelo governo federal. Isso não começou agora. Desde o início do mandato, Bolsonaro vem tentando cooptar a Polícia Rodoviária. A fórmula utilizada para cooptação não é nova. Ao mesmo tempo que contrata mais policiais e concede aumento salarial, Bolsonaro quebra as normas internas da instituição para nomear aliados para os principais cargos de direção. Ou seja, em troca de benefícios corporativos, Bolsonaro conquistou os meios necessários para o controle da instituição.
O mesmo processo de cooptação pode ser verificado em outras instituições federais como a Polícia Federal, o COAF, a Receita Federal e o IBAMA. No âmbito estadual é interessante notar que, apesar dos esforços, Bolsonaro não conseguiu cooptar as polícias estaduais. Mesmo que parcela significativa dos policiais civis e militares sejam seus simpatizantes, o presidente não conta com a lealdade dos comandantes das polícias militares e diretores das polícias civis. Afinal de contas, as polícias são mantidas e controladas pelos governadores. O sistema federativo agiu como freio e contrapeso do poder federal.
O caso da Polícia Rodoviária Federal revela uma fragilidade institucional. Ao contrário da Polícia Federal, que tem normas e regimento interno bem estabelecidos, a PRF ainda carece de normas e regras capazes de assegurar a independência funcional dos inspetores. Assim, ela se torna uma presa fácil para governantes interessados em instrumentalizá-la em favor dos seus interesses políticos.
A Polícia Rodoviária Federal é uma instituição inovadora no que diz respeito à existência de uma carreira única. Os policiais que compõem os seus quadros são profissionais comprometidos com suas obrigações e motivados pela ideia de zelar pela segurança viária da população. É urgente resgatar a PRF dos interesses partidários e recolocá-la como instituição de Estado. Para isso, é necessário responsabilizar e punir aqueles que transgrediram por ação ou omissão. Também é preciso fortalecer a autonomia funcional dos inspetores, aperfeiçoando o plano de carreiras, o regimento interno e o sistema de formação.