Perícia em evidência

A perícia nos casos de feminicídio: o que dizer sobre o assunto no Dia Internacional da Mulher?

Instituições se debruçaram para criar protocolos periciais específicos para o crime de feminicídio, o que tem auxiliado não apenas a polícia judiciária no enquadramento desse tipo de crime, mas também aos da justiça na promoção da redução da impunidade

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Realizar perícia de local de crime com uma vítima no local do fato é, por si só, algo que requer um treinamento e, mais do que isso, um preparo em todos os sentidos, em especial psicológico.

Mas, entre os locais de homicídio que nós, peritos, examinamos, dois se destacam nas respostas que apresentamos quando nos fazem aquela clássica pergunta: qual local te chocou mais? São os locais que envolvem dois tipos muito especiais de vítimas: mulheres e crianças!

Mas por que é assim? Simples: são seres que não esperamos ver na condição de vítima, são seres que nos remetem a imagens imaculadas, ternas, desconectadas do lado brutal da vida.

Hoje, no dia em que escrevo esta coluna, comemoramos o Dia Internacional da Mulher, um dia reservado à lembrança desse ser tão especial que é a mulher. Falar neste dia justamente sobre o ato de matá-las pode parecer descabido e inapropriado, mas acaba sendo necessário pois nos remete a uma avaliação sobre nossa própria condição como seres humanos e como sociedade. Será possível entender as razões desse ato tão bárbaro?

Mesmo antes de 2015, quando a legislação trouxe a possibilidade de classificar boa parte das mortes de mulheres como feminicídios, enquadrando assim o assassinato motivado pela condição de gênero feminino, as mortes de mulheres já nos impressionavam, quer pela estatística, quer pela brutalidade.

Essa semana, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aproveitando a data, divulgou números da violência contra as mulheres no Brasil no ano de 2021: o número de estupros contra mulheres aumentou 3,7% em relação a 2020.  Totalizaram 56.098 casos no ano passado, ou um crime a cada dez minutos. Já em relação aos feminicídios, os registros caíram 2,4%, mas o Brasil continua com um índice alarmante: um feminicídio a cada sete horas.

Se por um lado isso já é suficiente para assustar, escolhemos dois recentes casos ocorridos no mês passado e trazidos pela mídia para ilustrar o outro aspecto: o da brutalidade.

Caso 1: No dia 2 de fevereiro deste ano, na cidade de Pimenta Bueno (RO), um técnico em informática, de 28 anos, Gabriel Henrique Santos Souza Masioli, matou Antonieli Nunes Martins, de 32 anos, mulher com quem mantinha uma relação extraconjugal que durava dez meses. Eles eram colegas de trabalho.

A vítima estava grávida e tinha acabado de anunciar ao seu algoz aquela que era para ela uma linda novidade. Para a ocasião, preparou uma caixinha com uma roupa de bebê e colocou junto o teste de gravidez positivo. Os detalhes bárbaros e surreais incluem a descrição da dinâmica do fato divulgada na mídia: em depoimento, o suspeito revelou que imobilizou Antonieli com um golpe de mata-leão, enquanto eles estavam deitados de “conchinha” na cama. Nas palavras do próprio autor: “Ela estava deitada no meu braço esquerdo, de costas pra mim, quando do nada dei um mata-leão, imobilizando-a também com as pernas”. Ela se debateu e lutou contra a própria morte“. Ele afirmou ainda que só parou o mata-leão quando não sentia mais o próprio braço, “de tanto que havia apertado o pescoço” de Antonieli. Logo após a vítima ficar desacordada na cama, o suspeito narra que se sentou no chão e chorou. Segundo ele, nesse momento percebeu que Antonieli estava viva e , “desesperado”, foi até a cozinha da casa e pegou uma faca grande e a enfiou no pescoço da vítima.

Caso 2: No dia 5 de fevereiro, na cidade de Santo Estevão-BA, a cerca de 150 quilômetros de Salvador, a biomédica Jéssica Regina Macedo Carmo, de 31 anos, estava grávida de 9 meses e morreu após ser atingida por um disparo de arma de fogo calibre 12. O autor do disparo foi George Passos Santana, conhecido como George Breu. George era ex-vereador e chefe de gabinete da prefeitura do município. Ele alegou à polícia que o disparo foi acidental. Na versão dele, quando estava em seu carro na porta de casa, a biomédica o teria chamado para conversar sobre o relacionamento e ele observou que ela estava com as mãos para trás, desconfiando desse gesto. Em seguida, teria ocorrido uma discussão e, logo depois, um disparo de forma acidental. Segundo ele, após perceber que Jéssica havia sido baleada nas costas, decidiu levá-la para o hospital. A família da vítima afirma que o casal tinha um relacionamento havia cerca de 1 ano e 2 meses, e que o casamento era conturbado, marcado por brigas. A matéria informa ainda que Jéssica  tinha uma filha de 3 anos, fruto do relacionamento anterior, que não morava com a mãe porque George não permitia que ela e a filha mantivessem contato.

Falando especificamente da perícia em local de feminicídio, temos observado nos últimos anos um movimento muito positivo: instituições se debruçaram para criar protocolos periciais específicos para casos de feminicídio, o que tem auxiliado não apenas a polícia judiciária no enquadramento desse tipo de crime, mas também o Judiciário na promoção da redução da impunidade. São exemplos dessas iniciativas a publicação, pela Polícia Civil do Distrito Federal, de um protocolo inovador, ainda no ano de 2017, denominado Procedimento Operacional Padrão, e descrito como Abordagem Pericial de Locais de Feminicídio; e o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, publicado em 2020 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que inclui os protocolos destinados a atividade pericial (perícia de local, medicina legal, DNA e identificação papiloscópica), além do aspecto investigativo.

Uma das mudanças significativas para esse novo olhar que se exige do perito de local é a identificação e materialização da chamada violência simbólica, e um entendimento quanto à motivação do autor do delito, o que tem feito a diferença em relação a essa nova abordagem.

São importantes mudanças, mas o que nós, peritos, desejaríamos mesmo seria não estar nesses locais com a frequência com a que temos comparecido.

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