Perícia em evidência 30/08/2023

A perícia é POP: como Ícaro, nos deram asas, mas o que vimos foi um mundo pequeno

A oportunidade de se discutir falhas tanto periciais como investigativas deve ser aproveitada. Equívocos sempre nos ensinam mais que elogios e glória!

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A manchete de uma matéria jornalística em um site nos chama a atenção para números expressivos: “Isabella: O Caso Nardoni’ é visto por 5,7 milhões em quatro dias e fica em 1º lugar na Netflix”.

Na semana passada, fomos levados a reviver um caso emblemático na história criminológica brasileira: o caso Isabela Nardoni. Para a perícia, foi também um marco. O ano, 2008. Uma criança de cinco anos morta por queda a partir da janela de um apartamento de classe média em São Paulo, pai e madrasta como réus. Comoção nacional, perícia como protagonista, julgamento acompanhado por pessoas que fizeram do drama associado uma extensão de sua sede pessoal de justiça.

O documentário na forma de um filme reacendeu muitas controvérsias. Dentre elas, críticas que foram direcionadas não apenas à perícia, mas ao processo de investigação como um todo. A discussão em nada altera a condenação dos réus, que seguem cumprindo suas penas (a madrasta já em regime aberto).

Além do documentário, a Folha de São Paulo organizou ainda três lives, com dois dos repórteres que acompanharam o caso desde o início, um deles autor de um livro. Depois desse momento, o que se pode extrair de lições?

Um dos primeiros pontos diz respeito a entender como é diferente lidar com um caso midiático, como tudo em torno desses casos torna-se amplificado, e o viés associado é inevitável.

Em um artigo dessa coluna publicado no início de 2022, falando sobre os ditos “pecados capitais da perícia”, nos referíamos a um deles em especial: a soberba! Inegavelmente esse pecado também se faz presente nesse caso. Admitir nossas falhas é difícil, mesmo decorridos tantos anos. Mas existem falhas realmente como apontaram o documentário e as lives em discussões levadas a cabo?

A resposta: Sim, falhas existiram, compreensíveis em um contexto atrelado à época dos fatos, bem como a questões organizacionais, a vieses diversos hoje mais acessíveis de entendimento.

A história moderna da perícia no Brasil está atrelada a grandes casos, que foram mobilizando cada vez mais pessoas, não apenas os envolvidos diretamente na busca da produção da prova técnica, mas até mesmo um publico leigo, sedento por entender como os modernos sherlock holmes trabalhavam. Dentre os casos que construíram o atual status dado à perícia brasileira, cito o Caso Josef Mengele, em 1985, no qual a identificação de uma ossada encontrada no Brasil mostrou que o médico nazista vivera por aqui durante muitos anos; depois, em 1996, o Caso PC Farias, o ex-tesoureiro do ex-presidente Collor, morto com uma namorada em sua casa de praia próxima a Maceió, evento até hoje controverso; deste saltamos para 2002 e o caso da morte dos pais de Suzane von Richthofen, até finalmente chegarmos a 2008, com o Caso Isabeli Nardoni.

O fenômeno relacionado a essa popularização da perícia não se restringiu ao Brasil. Ele ocorreu e foi estudado em todo o mundo. Ganhou até mesmo um nome: “efeito CSI” em referência ao mais popular seriado de TV que tratava de perícia.

E assim, o perito se tornou para alguns um Deus, ou pelo menos um Semideus. Ganhou asas, alçou voo rumo ao sol, repetindo o mito de Ícaro. Hora de voltar à terra firme, antes que a cera dessas asas se derreta por completo.

A realidade é bem mais dura que o glamour de uma atividade que carece ainda de atingir sua excelência país afora. Como já destacado em outros textos dessa coluna: verdadeiros abismos separam avaliações de qualidade quando se comparam atividades periciais realizadas nos grandes centros e nos mais afastados recônditos deste país continental.

A oportunidade de se discutir falhas tanto periciais como investigativas deve ser aproveitada. Equívocos sempre nos ensinam mais que elogios e glória!

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