Mulheres e Segurança Pública 13/03/2024

A perícia de feminicídios

A perícia de levantamento de local de crime é peça fundamental para elucidar o quebra-cabeça das investigações criminais e, entre as demandas que perpassam o setor NCCV, destaca-se atualmente o feminicídio, que é um tipo penal: um homicídio qualificado

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Yara Lúcia Lins Jennings

Perita Criminal no Núcleo de Crimes Contra a Vida da Polícia Científica do Estado do Pará

Como profissional farmacêutica-bioquímica de formação, há quase duas décadas exercendo a função de Perita Criminal, tive a oportunidade de ampliar a experiência institucional atuando no interior do Estado do Pará até chegar aonde atuo hoje, no Núcleo de Crimes Contra a Vida (NCCV), em Belém, da Polícia Científica do Pará. Acredito que ocupar meu espaço como mulher e perita, mantendo-me íntegra num contexto institucional, é motivo de orgulho. Apesar de vários momentos desafiadores em uma carreira predominantemente composta por um contingente masculino – não são raras as situações em que se manifesta a discriminação de gênero, jornada extenuante, os riscos inerentes da profissão –, percebi que tais elementos só aumentavam minha capacidade de superar os desafios e a paixão pela profissão havia se consolidado.

A perícia de levantamento de local de crime é peça fundamental para elucidar o quebra-cabeça das investigações criminais e, entre as demandas que perpassam o setor NCCV, destaca-se atualmente o feminicídio, que é um tipo penal: um homicídio qualificado. A virtude da alteração da lei 13.104/2015 está na simbologia, isto é, no alerta que se faz da necessidade de se coibir com mais rigor a violência contra a mulher em razão da condição do sexo feminino.

Sobre essa seara de crime, feminicídio, o aumento de casos vem alarmando exponencialmente a sociedade, uma vez que se trata de um fenômeno global. O que antes era descrito na perícia de local de crime com a ótica de homicídio de forma geral, no presente momento, a experiência traçada ao longo dos anos soma-se ao conhecimento das especificidades da atuação pericial nos crimes que podem ter motivação ligada à violência de gênero. Por este motivo, tenho me debruçado recentemente nos casos que atendemos, voltada com um olhar diferenciado para o assunto, o que para nós, mulheres da Segurança Pública, representa um convite para abraçar esta causa nobre, participando de ações estratégicas no enfrentamento da violência contra mulher com perspectiva de gênero.

Nesse sentido, julgo necessária e urgente a discussão sobre o tema sob o ponto de vista técnico da perícia de local na cena do crime em que se destaca a etapa do isolamento e preservação do local, a fim de garantir a integridade dos vestígios que apontarão os primeiros elementos para a investigação, para explicar o fato criminoso e subsidiar de forma mais adequada a investigação.

Ainda no tocante a esse aspecto procedimental, o perito deverá ter um olhar atento, perpassando pelas demais etapas do processamento do local com uma sequência lógica na realização da busca por vestígios, constatação, registro, individualização, coleta e encaminhamento, assegurando a cadeia de custódia. Por definição legal, o perito criminal é o profissional que tem competência no exame de local de crime, portanto, cabe a ele interpretar a interação íntima que existe no circuito entre vítima-autor-meio ambiente, em que pese o feminicídio ser um crime de consumação material, tanto feminicídio consumado quanto o tentado, que deixa rastros e podendo inclusive carregar aspectos relevantes sobre a autoria. O perito criminal, bem como o médico legista, juntamente com o delegado de Polícia Civil, escrivão e investigador constituem a equipe envolvida na investigação e devem manter a efetiva interação para a troca de informações. Além destes, a integração com os demais agentes da Segurança Pública é de grande relevância para melhor efetividade das ações, com a Polícia Militar, Secretarias Municipais de Mobilidade Urbana, Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN), Corpo de Bombeiros Militar, Guarda Municipal e Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.

As evidências são analisadas à luz da literatura, tanto nas ciências forenses quanto nas normativas. O Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio, publicado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, e o livro intitulado Feminicídio: Perícia Criminal e Valor Jurídico da Prova Material, de autoria da perita criminal Beatriz Figueiredo, versam sobre alguns elementos identificadores neste tipo de crime, que, se forem analisados de forma isolada, eles não são específicos, não são exclusivos e não são obrigatórios, em razão disso, é relevante a análise do conjunto de vestígios.

Dentre os elementos identificadores que o perito criminal não pode deixar de observar, citem-se aqui alguns: no exame perinecroscópico, observar a existência da multiplicidade e intensidade/profundidade das lesões na vítima, o que pode indicar que foram produzidas em virtude da raiva (misoginia) empregada quando da produção das lesões ou desprezo pela vítima. Verificar a localização das lesões, se em região vital, em locais associados à beleza e feminilidade (rosto), em regiões dotadas de significado sexual (seios), sinais de violência simbólica com intuito de infligir sofrimento na vítima, como por exemplo, fotografias rasgadas, objetos de estima quebrados.

Ressalte-se que o perito não manifesta julgamento, nem qualifica o crime, entretanto, ele deve valorizar as evidências, pois a prova pericial fornece efeitos jurídicos e, assim, subsidiará a investigação, na classificação como feminicídio, bem como na correta aplicação da pena pelos julgadores. Isto posto, é de fundamental importância que o perito, após a análise dos vestígios, possa inferir a hipótese mais provável da dinâmica do evento criminoso, de modo técnico-científico no laudo, formalizando o trabalho pericial.

Atualmente, é bastante significativa a quantidade de leis relacionadas à questão da condição feminina, existindo um amplo equipamento público que fornece políticas, programas, serviços especializados, protocolos, etc. Nesse contexto, é importante citar que o NCCV Belém produziu um Manual de Procedimento Operacional Padrão (POP) 1ª edição – Versão 1.0, 2021, do qual faço parte da equipe de autores, e trata-se de uma ferramenta composta por POPs que são instruções para garantir a qualidade e credibilidade do nosso trabalho. Em continuidade a este projeto, estamos elaborando o POP para feminicídios, tendo em vista as peculiaridades que a demanda exige, tema do próximo volume deste Manual.

Faz-se necessário levantar duas questões no sentido de buscar reflexões para solucionar as possíveis lacunas neste cenário brasileiro em relação ao crime de feminicídio. O corpo técnico da Perícia Criminal brasileira, bem como outros policiais, estão avançando na capacitação para o atendimento desta demanda. Em contrapartida, como tais legislações vêm sendo interpretadas, aplicadas e executadas pelos julgadores? Estão em consonância com a investigação policial e pericial?

Por fim, seria importante a educação continuada desta temática nas Universidades, bem como disciplinas inerentes ao tema nos cursos de formação dos concursos públicos dos órgãos de Segurança Pública, no intuito de orientar e formar o agente de segurança no combate à violência contra a mulher, impactando tanto na atualização profissional quanto na melhor qualidade de vida como ser humano.

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