Múltiplas Vozes 18/12/2025

A PEC da Segurança Pública e o PL Antifacção: Congresso Nacional ‘batendo cabeça’

O arranjo institucional que está emergindo no Congresso Nacional não viabiliza soluções para o principal desafio do setor, qual seja, a desarticulação e a precária cooperação entre os órgãos e entre os entes federados

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Luis Flavio Sapori

Professor da PUC-MG e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Rafael Alcadipani

Professor Titular da Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Diante da pressão popular, o Congresso Nacional está envolvido no reordenamento institucional da segurança pública brasileira, o que é bastante positivo. Temos uma janela de oportunidade para corrigir distorções normativas de modo a incrementar a eficácia do aparato repressivo do Estado no enfrentamento da criminalidade violenta como um todo, não apenas do crime organizado. Entretanto, os dois instrumentos jurídicos em pauta no Congresso, o PL Antifacção e a PEC da Segurança Pública, padecem de sérios problemas e, como se não bastasse, não estão articulados entre si.

O parecer apresentado pelo deputado Mendonça Filho (União Brasil–PE) sobre a PEC da Segurança Pública alterou por completo o texto original enviado pelo Executivo. O parlamentar aproveitou a tramitação para incluir na Constituição Federal dispositivos próprios da legislação penal e da execução penal, endurecendo punições para integrantes de facções criminosas. Entretanto, tais medidas já foram contempladas no recém-aprovado PL Antifacção no Senado, sem necessidade de constitucionalização.

O ponto mais delicado do parecer diz respeito ao redesenho proposto para o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). O texto original já transpunha para a Constituição normas presentes na lei que criou o SUSP em 2018 e, ainda que ampliasse o poder da União na definição das diretrizes nacionais, preservava o espírito de coordenação federativa. Surpreendentemente, a proposta de Mendonça Filho vai na direção oposta: empodera excessivamente os Estados e enfraquece a responsabilidade federal. Exemplo disso é a introdução do Artigo 144-B, que cria um sistema de políticas penais e entrega a cada governo estadual a definição do regime disciplinar interno e a regulamentação de visitas, atendimentos jurídico, religioso e escolar. Tal medida amplia as prerrogativas dos governadores na execução penal, na prática relativizando uma legislação nacional que deveria ser uniforme.

Além disso, o parecer ignora a necessidade de articulação entre União, Estados e municípios na formulação e implementação das políticas de segurança — elemento central para o funcionamento do SUSP. Em vez disso, determina apenas que cada ente federado elabore sua própria política, fomentando fragmentação e descontinuidade. O proposto Artigo 144-A trata a cooperação federativa como mera atuação em forças-tarefa intergovernamentais, coordenadas sempre pelo ente que as propuser. Na prática, o SUSP é reduzido a um arranjo de cooperação operacional entre Estados, rebaixando o papel do governo federal e, especialmente, da Polícia Federal. O parecer consegue, assim, desfazer o pouco avanço que a lei de 2018 havia proporcionado. Caso aprovado nesses termos, o SUSP estará definitivamente implodido, agravando ainda mais a parca articulação da política de segurança pública do país.

Como se não bastasse, há nítidas incongruências com algumas institucionalidades prescritas pelo PL Antifacção. A começar pelas normativas distintas no que diz respeito aos fundos federais que financiam o sistema prisional e a segurança pública. O PL Antifacção cria um imposto específico, a Cide-Bets, cuja arrecadação será repassada integralmente ao Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Este fundo tem sua atribuição ampliada, devendo financiar também a construção, ampliação, modernização e aparelhamento de estabelecimentos penais. O governo federal tem a tarefa de reestruturar os fundos federais vinculados à política de segurança pública, de forma a reduzir sobreposições. Tal reestruturação deve considerar a integração do FNSP, do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), do Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD) e do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal (FUNAPOL). A PEC da Segurança Pública, por sua vez, garante a manutenção do FNSP e do FUNPEN, não mencionando os demais fundos federais, e apenas ressalta a maior porcentagem no repasse de recursos para os estados mediante o mecanismo de repasse fundo a fundo. Caso seja mantida nesses termos, a PEC da Segurança Pública tende a inviabilizar o fortalecimento do FNSP nos termos propostos pelo PL Antifacção, colocando em cheque a criação da Cide-Bets.

Aspecto mais problemático é a definição do grau de responsabilidade do Executivo federal no enfrentamento das facções criminosas, tipificação penal reconhecida por ambos os documentos legais. O PL Antifacção concebe as Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (FICCOs) como principal mecanismo de atuação conjunta e coordenada dos órgãos responsáveis pela investigação, persecução penal e inteligência em segurança pública no enfrentamento a organizações criminosas. Atribui à Polícia Federal a coordenação das FICCOs, ficando em segundo plano os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos), forças-tarefa coordenadas pelos Ministérios Públicos. O PL Antifacção fomenta essa dualidade indesejável das forças-tarefa, mantendo-se foco crônico de desarticulação institucional. A PEC da Segurança Pública, por seu turno, prescreve prioritariamente a construção de forças-tarefa entre as unidades federativas, empoderando o aparato policial estadual em detrimento da Polícia Federal. É destacada a expressão força-tarefa intergovernamental e interinstitucional, admitida a participação do Ministério Público. Está estabelecido também que as forças-tarefa serão coordenadas por órgão designado pelo ente federativo proponente. Observa-se, portanto, que a PEC da Segurança Pública tende a fortalecer as prerrogativas dos estados no enfrentamento das fações criminosas ao passo que o PL Antifacção garante atribuições mais efetivas ao Executivo federal.

O afã de construir algo a toque de caixa e com olhar apenas eleitoreiro gera um Frankenstein normativo que de nada ajudará nosso país. A ausência de um debate técnico consistente desperdiça tempo precioso que o país não tem, afastando-nos de soluções estruturais para a grave crise da segurança pública no Brasil. O arranjo institucional que está emergindo no Congresso Nacional não consegue viabilizar soluções para o principal desafio do setor, qual seja, a desarticulação e a precária cooperação entre os órgãos e entre os entes federados. Basta de Frankensteins normativos na segurança pública brasileira.

 

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