A participação social e a elaboração de políticas públicas penais
A audiência pública e a consulta pública do plano Pena Justa, organizada pelo CNJ e pelo Ministério da Justiça, deverá ser um marco emblemático da participação social e civil na elaboração do Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras
Ítalo Barbosa Lima Siqueira
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais e do Laboratório de Estudos da Violência
Pena Justa aprofunda o Estado Democrático de Direito
A questão prisional no Brasil é permeada por problemas de difícil superação, devido ao contexto histórico-colonial que legou o racismo e a desigualdade social como uma marca persistente em nosso cotidiano.
A audiência pública (29 e 30 de abril) e a consulta pública (15 de abril a 5 de maio) do Pena Justa, organizada pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, compõem um marco emblemático da participação social e civil na elaboração do Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras, que é derivado do julgamento da ADPF 347 pelo STF, que reconheceu a violação sistemática de direitos humanos nos presídios brasileiros.
Nesse contexto, a participação social desempenha um papel decisivo na garantia da transparência e na promoção de políticas públicas penais mais justas, influenciando diretamente nas decisões que impactam milhares de vidas. Recentemente, têm sido observados avanços significativos nesse campo, especialmente no que diz respeito aos movimentos e coletivos da sociedade civil na crítica da execução penal.
Sistema de justiça investe na participação social nas políticas públicas penais
O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional (ECI) no sistema prisional brasileiro pelo STF requereu que os Poderes tomassem providências importantes para a redução da superpopulação prisional e reversão das condições degradantes de encarceramento.
Nessa direção, o CNJ promove uma série de políticas públicas penais em articulação com o Executivo Federal. No âmbito do Judiciário, a Resolução CNJ n. 488/2023, que estabelece a política judiciária de fortalecimento dos conselhos da comunidade, e o seu Manual, devem ter impacto na criação e renovação desses órgãos da execução penal.
Os conselhos da comunidade, compostos por representantes da sociedade civil, têm o dever de fiscalizar as condições dos estabelecimentos penais, garantir o respeito aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade e contribuir para a elaboração de políticas públicas balizadas pelas necessidades de cada local. Com a decisão da ADPF 347, a importância desses conselhos deve ser reafirmada, incentivando um maior engajamento da sociedade na implementação do Pena Justa.
Além dos conselhos da comunidade, as pessoas egressas do sistema prisional também têm se organizado para reivindicar seus direitos e contribuir para a construção de políticas públicas mais inclusivas e voltadas para assegurar a dignidade no período pós-cárcere. Suas experiências e vivências são fundamentais para a identificação de falhas no sistema e para o desenvolvimento de estratégias de reintegração social condizentes com os fatores que dificultam o exercício pleno da cidadania.
De maneira oportuna, outra iniciativa articulada com a sociedade civil foi o fomento das Redes de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional, as RAESPs. A primeira delas foi criada em 2006 na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de promover o acesso a direitos e às necessidades específicas das pessoas que saem do sistema prisional. Atualmente, a experiência abrange oito estados da Federação[1]. Essa articulação envolve diversas instituições do sistema de justiça, execução penal e coletivos da sociedade civil.
Em 2023, o CNJ sediou o evento de lançamento da Rede Nacional de Atenção às Pessoas Egressas, a RENAESP. Essa Rede Nacional foi instituída para estimular e coordenar os esforços em prol de uma política pública ainda incipiente diante dos desafios enfrentados no período pós-cárcere. No âmbito federal, as redes de atenção foram reforçadas pela publicação do Decreto nº 11.843, da Presidência da República, que estabeleceu a Política Nacional de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional.
Esse cenário parece aquecer a relevância da opinião e do protagonismo da sociedade civil no debate sobre as importantes decisões que serão tomadas na elaboração dos planos de enfrentamento da situação do sistema prisional brasileiro.
Familiares como uma categoria política relevante
A experiência latino-americana confere legitimidade para os movimentos sociais de memória e justiça, de busca por desaparecidos e de familiares de vítimas da violência. Isso porque em muitos países, a luta cotidiana e emblemática de coletivos de familiares e organizações de direitos humanos provoca o debate público e pressiona por mudanças legislativas e pela reconsideração do entendimento sociológico e jurídico da categoria de vítima. Não obstante, os efeitos da violência devem ser discutidos nos marcos de um aprofundamento e consolidação do Estado Democrático de Direito.
Essa experiência é notada na América Latina pelos movimentos de mulheres que reivindicam o direito à verdade e à memória no contexto das ditaduras e da violência de grupos armados e paraestatais.
Em particular no Brasil, o movimento social de familiares, formado principalmente por mulheres, demarca uma importante atividade política no campo dos direitos humanos e motiva a superação das violações no contexto do encarceramento.
O fortalecimento dos movimentos de familiares de pessoas encarceradas qualificou a denúncia de violações de direitos. Nesse ponto, a busca por melhorias nas condições carcerárias e na promoção da reintegração social pelo fortalecimento de laços familiares e comunitários deve ser um objetivo incontornável. Por meio de associações de familiares, coletivos e pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, esses movimentos ganharam ainda mais voz e legitimidade para atuar no debate público, ampliando os esforços a fim de superar o histórico problemático de discriminação e criminalização das reivindicações por melhores condições de encarceramento.
Um momento histórico de reparação
As chacinas prisionais da década de 2010 evidenciaram o alto custo social e financeiro da expansão das políticas penais encarceradoras. A vitimização da população dos centros urbanos, expressa nos elevados índices de homicídios, no aumento de desaparecidos, nos deslocamentos urbanos forçados e na elevação da violência em territórios fronteiriços (SIQUEIRA et al., 2022; DIAS & PAIVA, 2022), ressalta o imperativo do debate sobre a reparação estatal diante do incremento da violência nas prisões.
Todavia, para um quadro de extrema violência e violações de direitos fundamentais, não tivemos apenas uma resposta do ponto de vista de oportunidades de direitos, mas também da confusão entre segurança pública e política penal, com a aproximação da resposta policial para a questão prisional, de consequências preocupantes para a política pública.
A violência do ambiente prisional é uma chaga do autoritarismo e destrói as bases da sociedade pacífica. Por isso, estamos diante de uma oportunidade singular para avançar em estratégias de controle do ambiente prisional que reforcem práticas de responsabilização pautada pela efetivação da reintegração social.
Para tanto, apoiar o aprimoramento dos canais de comunicação e denúncia de violações de direitos, maus-tratos e tortura para prevalência dos direitos constitucionais de tratamento justo e do acesso à justiça e fortalecimento institucional das Corregedorias, Ouvidorias e Mecanismos preventivos nos órgãos de gestão penitenciária indicam uma trajetória positiva.
Em suma, qualquer medida que tenha impacto no campo penal deverá consultar e trazer protagonismo da opinião e reinvindicação das pessoas afetadas diretamente pela violência prisional, como familiares, privados de liberdade e pessoas egressas do sistema penitenciário. Espera-se, portanto, a articulação de instâncias de participação social na elaboração de políticas públicas penais.