Lucas Batista Pilau
Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)
Há mais de vinte anos, o delegado Vicente Chelotti tomava posse como Diretor-Geral da Polícia Federal. Embora não fosse o primeiro delegado a assumir o comando da instituição desde a redemocratização, Chelotti foi fundamental para quebrar a influência dos militares sobre a cúpula do órgão, que se estendeu durante a ditadura militar e, posteriormente, com a gestão de Romeu Tuma (1986-1992). Com a saída de Chelotti em 1999, houve um período de rotatividade na direção-geral até a ascensão do delegado Paulo Lacerda, indicação do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nos anos seguintes, durante os governos de Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, a tendência de delegados de carreira à frente da Polícia Federal se manteve: Luiz Fernando Corrêa (2007-2011), Leandro Daiello (2011-2017), Fernando Segovia (2017-2018) e Rogério Galloro (2018-2019). Durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, a regra tácita de indicação de delegados foi convertida na Medida Provisória n.º 657/2014, posteriormente transformada na Lei n.º 13.047/2014, que determinou que o cargo de Diretor-Geral é privativo de delegado de Polícia Federal integrante de classe especial. Na época, essa norma blindou os delegados das pressões internas para que os cargos de chefia fossem acessíveis a todas as categorias – como agentes, escrivães, peritos e papiloscopistas.
Ao longo dos anos, além das disputas internas com militares e as categorias que compõem o órgão, os delegados também disputaram atribuições no espaço jurídico. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário n.º 593.727, que versava sobre o poder de investigação do MP. Nesse caso, foi reconhecida a competência do MP para realizar investigações, mantendo o inquérito policial, principal atividade dos delegados em sua prática cotidiana, como um instrumento não exclusivo desse grupo. No ano seguinte, a Procuradoria-Geral da República ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5508 para questionar dispositivos da Lei n.º 12.850/2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas, a fim de impedir que delegados firmassem acordos de colaboração premiada. Dessa vez, os delegados saíram vitoriosos.
E foi entre vitórias e derrotas ao longo de mais de vinte anos que os delegados federais adentraram no governo de Jair Messias Bolsonaro em 2019. Durante os quase três anos e meio de existência de seu governo, Bolsonaro trocou quatro vezes o Diretor-Geral. Na primeira vez, foi acusado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro de estar interferindo no órgão, chegando a ser investigado no STF. Após esse episódio, Bolsonaro foi barrado de maneira inédita pelo STF de nomear o delegado Alexandre Ramagem sob o argumento de desvio de finalidade. Poucos anos depois, indicou Paulo Maiurino para comandar o órgão e sua gestão foi cercada de suspeitas sobre intervenções políticas em investigações e na indicação de Superintendentes Regionais.
É nesse contexto que, na semana passada, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) lançou uma nota pública cobrando do governo federal a assinatura da Medida Provisória prometida que reestruturaria as forças policiais da União e concederia reajuste salarial, para as quais teria sido reservado o valor de R$ 1,7 bilhão no Orçamento de 2022. Em uma votação realizada em assembleia no último dia 2 de maio, os delegados sindicalizados votaram por realizar paralisações pontuais, parciais e progressivas, além de medidas de pressão ao governo federal. Entre os quesitos com menor adesão, estão a entrega dos cargos de chefia (58,33% a favor e 41,65% contra) e o pedido de renúncia do ministro da Justiça Anderson Torres, também delegado da PF (60,99% a favor e 39,01% contra). Claramente, trata-se de um movimento em defesa das prerrogativas e do poder político conquistado pelos delegados nas últimas décadas.
Dois dias depois após a nota da ADPF, a Federação Nacional dos Policiais Federais, a FENAPEF, lançou uma “Nota de Esclarecimento” afirmando que a entidade representa 85% do efetivo da Polícia Federal e não teria participado de nenhuma reunião em que fosse deliberada paralisação, calendários de greve, pressão por renúncias de ministros, entre outros assuntos. Essa posição pode ser compreendida no longo histórico de luta sindical dos agentes, escrivães, peritos e papiloscopistas, que há décadas pressionam por pautas específicas e claras: uma reestruturação que estabeleça a carreira única e a extinção do inquérito policial como instrumento de investigação. Contudo, há poucos dias a FENAPEF também decidiu realizar manifestações para pressionar o governo.
Nesse sentido, com a adesão das duas principais entidades sindicais e associativas dos policiais federais, uma questão em aberto é sobre a clareza das pautas e da representatividade das paralisações agendadas. De um lado, há um contingente de 605 delegados federais que, mesmo divergindo pouco na assembleia da ADPF que decidiu pela paralisação, representam 34% do efetivo total de delegados ativos, que em março de 2021 era de 1.773 no total, segundo dados do Anuário Brasil de Segurança Pública 2021. Já em relação ao total de efetivo dos policiais (10.996, segundo a mesma fonte), os 605 delegados representam a fração de 5,5%. De outro lado, está a FENAPEF, que representa o núcleo duro da instituição e conta com demandas historicamente contrárias às dos delegados, como mencionado acima. No meio dessa paralisação, não se pode esquecer das entidades e atores alinhados com as pautas do governo Bolsonaro e que poderiam encontrar dificuldade de se opor a ele. Por isso, o cenário em que está inserida a proposta de paralisação é de uma zona cinzenta e pouco unificada, já que uma multiplicidade de forças existentes dentro do órgão estará agindo em busca de seus próprios interesses.
Enquanto esses eventos se desenrolam, é noticiado que o processo para troca do Superintendente Regional de Alagoas, levado adiante pelo atual Diretor-Geral Márcio Nunes, foi interrompido por uma força ainda desconhecida, embora contrária à vontade da cúpula da instituição. Assim, o SR de Alagoas manteve-se no cargo, embora tenha declarado que não teria pedido para ficar. Em um quadro de supervalorização de superintendências da PF que estejam alinhadas com o governo federal, a situação pode trazer à tona novamente as demandas dos delegados federais pela autonomia da instituição e pela blindagem do órgão às ingerências políticas externas. Entre a paralisação programada pelos delegados e a paralisação da decisão tomada pelo Diretor-Geral, resta saber os efeitos desses movimentos para as lutas que pulsam dentro e fora da Polícia Federal. E para a democracia brasileira.