Betina Warmling Barros
Doutoranda em Sociologia (USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Não houve apenas uma pandemia de coronavírus no Brasil. Após um ano e três meses dos primeiros casos de Covid-19 no país, não é mais possível analisar a crise vivida como um fenômeno único. Os impactos sociais da circulação do vírus foram sentidos pela população brasileira de diversas formas, a depender do momento, da região do país, da classe social, da raça e das condições socioeconômicas do grupo analisado. O mesmo aconteceu em relação à segurança pública: a pandemia impactou o cenário da violência do país de diferentes formas, a depender do aspecto analisado. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 permite mensurar alguns desses impactos, que podem ser divididos em quatro tópicos.
1. O que não era esperado e aconteceu
Ao contrário do que se poderia imaginar, as medidas de isolamento social não levaram à diminuição das Mortes Violentas Intencionais (MVI) no país. As MVI’s totalizaram 50.033, em 2020, o que significa uma taxa de 23,6 mortes por 100 mil habitantes e um aumento de 4% em relação à taxa do ano anterior. O crescimento ocorreu apesar da queda nas taxas de latrocínio (-10,6%) e lesão corporal seguida de mortes (-12%), crimes que compõem a categoria. Levando em conta apenas os homicídios dolosos, portanto, a alta chegou a 5,3% em relação a 2019.
O aumento da letalidade policial de 0,3% é outro dado que causa surpresa, sobretudo quando se observa que estados historicamente marcados pela alta nas mortes decorrentes de intervenção policial, como Rio de Janeiro e São Paulo, apresentaram queda no último período, de -31,8% e -6,9%, respectivamente.
2. O que era esperado e se concretizou
Como previsível, o isolamento decorrente da pandemia parece ter exercido grande influência na queda dos crimes patrimoniais. Foram 26,8% de diminuição na taxa de roubos de veículos, 27,1% na de roubos a estabelecimentos comerciais, 16,6% na de roubos a residência, 25,4% na de roubos de carga e 36,2% na de roubos a transeuntes. O fato de que os assaltos a pedestres tenham sido o tipo de roubo que mais caiu em 2020 reforça que a menor presença de pessoas nas ruas foi um importante fator na queda dos roubos no país.
3. O que pode estar subnotificado
A subnotificação de alguns crimes foi outra possível influência da pandemia nos índices criminais de 2020, sobretudo nos casos de violência contra mulher, em que as vítimas podem ter enfrentado dificuldades de acessar os órgãos públicos para realizar o registro dos crimes. Assim, parte das quedas observadas nos registros de ameaças contra mulheres (-11,8%), lesões corporais decorrentes de violência doméstica (-7,4%) e estupros de mulheres (-13,5%) pode ter se dado em razão da subnotificação. O aumento de 16,3% nas chamadas realizadas ao 190 informando violência doméstica em 2020 e de 3,6% nas Medidas Protetivas de Urgência concedidas pelo Judiciário reforçam a hipótese de que são necessários outros indicadores para medir o impacto da pandemia na violência contra as mulheres.
Os feminicídios, por outro lado, se mantiveram em patamar muito próximo ao verificado em 2019, totalizando 1.350 vítimas, o que significa um aumento de 0,7% em relação ao período anterior.
4. O que escancarou aquilo que já se imaginava
A alta das taxas de contaminação dos policiais e servidores do sistema prisional foi um dos impactos mais diretos e cruéis da pandemia na segurança pública do país. Os dados do Anuário informam um total de 472 policiais vítimas de Covid-19 em 2020, o que significa em torno de 143% a mais de óbitos pelo vírus do que mortes de policiais ocorridas por confrontos durante ou fora de serviço. No caso dos servidores do sistema prisional, foram 224 óbitos acumulados desde o início da pandemia e uma média 18,3% do total de funcionários infectados.
Além disso, a pesquisa “Escuta de Policiais e demais profissionais de segurança pública no Brasil” mostrou que 29,5% do total de profissionais afirmou ter sido infectado pelo vírus, enquanto 42,5% indicaram sentir muito medo de ser infectado durante o trabalho. Em contraponto, apenas 28,5% dos policiais disseram ter recebido treinamento da corporação para lidar com a Covid-19. Apesar de elevados índices de infecção e óbitos dos policiais pelo vírus, a pesquisa também revelou que 62,8% dos policiais concordam com medidas contra a Covid-19 cuja ineficácia já está cientificamente comprovada, como o uso de cloroquina e ivermectina de forma precoce. Além disso, 16,5% dos profissionais entre todas as corporações afirmaram que não possuem intenção de se vacinarem contra o vírus, medida essencial para a superação da pandemia no Brasil.
Tanto o desamparo dos profissionais da área em meio a uma pandemia, como a aderência de parte desses trabalhadores a pautas que dificultaram o enfrentamento da crise, encabeçadas por Bolsonaro e seus apoiadores, são a comprovação daquilo que vem sendo aventado já há algum tempo por quem observa de perto os problemas da área. Nesse sentido, seja durante ou após a pandemia, não há como falar em melhoria nos altos índices de violência no país, que se confirmam, ano após ano, sem falar em valorização profissional de quem atua na linha de frente da segurança pública brasileira e sem criar as condições necessárias para a atração desses setores às pautas que prezam pela democracia, pela ciência e pelos direitos humanos.