Segurança Pública na Amazônia

A nova corrida do ouro na Amazônia

O crescimento exponencial da exploração garimpeira implicou dificuldades ainda maiores para o controle estatal. A atuação das polícias estaduais no registro, investigação e combate a crimes relacionados ao garimpo ilegal ainda é muito pontual diante do avanço desse tipo de criminalidade

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Mãe Crioula

Se os desafios estatais em relação à fiscalização ambiental e controle da ordem pública nas regiões de garimpo são históricos e sempre estiveram presentes na região, o crescimento exponencial da exploração garimpeira, sobretudo a partir de 2019, implicou dificuldades ainda maiores para o controle estatal. Essa expansão das áreas de garimpo nesse período mais recente inspira muita preocupação, uma vez que adentrou, como nunca, nas Unidades de Conservação (UC) de Proteção Integral e Terras Indígenas (TI) da região, territórios integralmente protegidos de qualquer retirada mineral.

Em parte, a invasão desses territórios ocorreu pela expectativa de alinhamento entre os desejos da comunidade garimpeira e as forças políticas federais daquele período, que poderiam facilitar a futura regularização da exploração ilegal. Em fenômeno próximo ao que ocorre na grilagem, a percepção nesse momento é de que seria criado um marco regulatório posterior que “anistiaria” as atividades criminosas. Vale relembrar que o então Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) incentivou publicamente a invasão garimpeira em Terras Indígenas, chegando a afirmar, por exemplo, que a TI Yanomami sequer deveria existir.

Além disso, logo no início do mandato, em março de 2019 o ministro de Minas e Energia da gestão de Bolsonaro, Bento Albuquerque, anunciou publicamente a intenção do governo em permitir a atividade mineral em Terras Indígenas.[1] Essa articulação deu origem ao PL 191/2020 visando justamente à liberação da mineração em TIs, assinado por Bolsonaro.[2] A percepção social era de ausência completa do Estado fiscalizador em garimpos, somado a um projeto de longo prazo que visava legalizar práticas inconstitucionais.

Esse estímulo por parte do governo federal, somado ao aumento do preço do grama do ouro durante a pandemia de Covid-19 e à diminuição das fiscalizações ambientais, produziu o que poderia ser chamado de “a nova corrida do ouro”. O aumento da exploração mineral que ficou demonstrado pelos mapas construídos a partir de dados de georreferenciamento se confirma quando são analisados os dados de arrecadação de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM).[3]

Em 2018, o total de CFEM sobre Ouro arrecadado em todo o Brasil foi em torno de R$ 14 milhões, dos quais R$ 43 milhões foram apenas em UFs da Amazônia Legal, ou seja, cerca de 30% do total do CFEM arrecado estava na região. No ano, a principal UF da Amazônia Legal arrecadadora foi Mato Grosso (R$ 20,4 milhões). Em 2020, a arrecadação nacional saltou para R$ 351 milhões, um crescimento de 147,5%. Na região amazônica, o salto foi ainda maior, com aumento de 286% e arrecadação chegando a R$ 166 milhões. Ou seja, em 2020, apenas na Amazônia Legal houve maior arrecadação de imposto devido no caso de garimpo de ouro do que em todo o Brasil em 2018.

Esse crescimento foi contínuo nos anos seguintes, tanto no Brasil como na Amazônia Legal, mas de forma mais intensa na região. Em 2021, a arrecadação na Amazônia já significava 49% da arrecadação de todo o país, representando o total de quase R$ 200 milhões. Quando se observam os dados por UF, fica claro que a arrecadação se expandiu em todos os Estados, à exceção do Acre e de Roraima, onde não existem títulos de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) outorgados. No estado do Pará, a arrecadação atingiu seu ápice histórico em 2021, totalizando mais de R$ 86 milhões, um aumento de 486% em relação a 2018.

A explicação para esse crescimento está não apenas no aumento da produção de ouro no Estado, mas também no uso das PLGs paraenses para esquentar o ouro ilegalmente extraído em territórios totalmente protegidos, como na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. No Mato Grosso, 2021 também representou o ano de maior arrecadação, chegando ao total de R$ 71 milhões recolhidos somente com o imposto. Somados, os dois Estados representaram, em 2021, 80% da arrecadação da Amazônia Legal e 38% da arrecadação de CFEM do país.

Por fim, em 2022, todas as UFs analisadas tiveram queda nos valores de CFEM, à exceção do Amazonas, que aumentou, em um ano, de R$ 797 mil para R$ 880 mil. O Estado está bem atrás dos demais em termos de valores arrecadados, o que ocorre em razão da menor presença de áreas de garimpo em seu território. Ainda assim, o total arrecadado na Amazônia Legal segue muito acima dos valores de 2018 e 2019, o que confirma o salto na produção de ouro em garimpos na região nos anos mais recentes.

O mesmo fenômeno de expansão da garimpagem ilegal se percebe quando são analisados os registros dos crimes ambientais, ou seja, os dados dos tipos penais utilizados para criminalizar o garimpo ilegal que são principalmente três crimes.

  • O art. 55 da Lei de Crimes Ambientais tipifica o ato de extrair pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida. Em suma, utiliza-se na criminalização do garimpo que ocorre em áreas passíveis de exploração, mas em desconformidade com os parâmetros legais.
  • O art. 44 da Lei de Crimes Ambientais tipifica o ato de extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, sem prévia autorização, pedra, areia, cal ou qualquer espécie de minerais. Em suma, utiliza-se na criminalização do garimpo que ocorre em áreas totalmente protegidas.
  • O art. 2º da Lei 8.176/1991 que criminaliza, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.

Durante o trabalho de campo, foi possível perceber que, feita a verificação do garimpo ilegal, o procedimento mais comum por parte das instituições que atuam como polícia judiciária é a tipificação como crimes conexos entre o art. 55 da Lei de Crimes Ambientais e o art. 2º da Lei 8.176/1991. Assim, quando os crimes ocorrem em territórios federais (UCs federais e TIs), a competência para investigação dos três crimes é da Polícia Federal; quando os crimes ocorrem em terras estaduais, a competência para os crimes de extração é da Polícia Civil. A investigação do crime de usurpação, por se tratar de bem da União, é sempre de competência da polícia judiciária da União.

Os registros de inquéritos policiais federais contendo crime de extração sem autorização e de usurpação na Amazônia Legal cresceram nos últimos anos. Em relação ao crime de extração, houve aumento de 93,5% em 5 anos, passando de 154 inquéritos, em 2018, para 298 em 2022. No Estado do Maranhão, o aumento proporcional foi de 525%, apesar do total de inquéritos em 2022 ser de apenas 25. Já no Pará, o aumento foi de 232%, além do Estado ser o responsável pela maior parte dos registros da região. Apenas em 2022, foram 103 crimes de extração investigados.

São os crimes de usurpação, contudo, que chamam mais a atenção em termos de quantidade de registros. Em 2022, considerando todos os Estados da Amazônia Legal, foram 555 casos, o que significa um aumento de 108% em relação a 2018, quando a Polícia Federal instaurou 267 inquéritos para investigar o crime. No ano de 2020 o aumento se mostrou mais representativo, em torno de 31,5% em relação ao período anterior, o que reforça os elementos colhidos durante o trabalho de campo e os demais dados oriundos do monitoramento de satélite a respeito da explosão do garimpo ilegal no primeiro ano de pandemia de Covid-19.

As UFs da região mais impactadas pelo crime são o Pará, que passou de 57 inquéritos em 2018 para 134 em 2022 (+135%); Roraima, que apresentou o maior crescimento da região, de 566%, saltando de apenas 24 registros em 2018 para 160 em 2022; e Mato Grosso, com alta de 102%, crescendo de 52 para 105 registros em cinco anos. Os três estados juntos representaram 71,9% do total de inquéritos na Amazônia Legal em 2022.

Assim, ainda que a quantidade de fatos criminalizados no contexto de garimpo ilegal esteja muito aquém se comparada com o número de alertas de áreas indevidamente exploradas, o crescimento dos inquéritos da Polícia Federal nos últimos anos acompanha a mesma tendência de aumento do garimpo. De alguma forma, portanto, a polícia judiciária da União se mostrou atenta às mudanças em relação à expansão dos crimes de garimpo ilegal. Isso também está demonstrado pela quantidade de operações em relação a crimes de mineração realizadas pela PF. Houve crescimento de 426% no número de operações em toda a Amazônia Legal, passando de 42, em 2018, para 221 em 2022. O período de maior crescimento foi entre 2019 e 2020, com aumento de 133%, seguido do período 2021-2022 (+62,5%).

Dentre os Estados da região, chama a atenção a mudança do comportamento da PF em termos de ações operativas em Roraima, onde apenas uma operação para conter crimes de mineração havia sido realizada em 2018, passando para 19 no ano seguinte, 31 em 2020, 48 em 2021 e 105 em 2022. Ou seja, mesmo antes da mudança de gestão federal e da entrada em vigor do Decreto 11.304/2023, que dispôs sobre as medidas de enfrentamento da Emergência em Saúde Pública no território Yanomami, a PF já aumentava suas ações fiscalizatórias em relação aos crimes de garimpo no local. No que diz respeito à atuação das polícias estaduais, por outro lado, os dados indicam que o combate ao garimpo ilegal não tem sido uma prioridade. Os registros referentes ao art. 44, ou seja, extrações minerais em florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, somaram apenas 49 fatos em toda a região da Amazônia Legal em 2022, o que significa inclusive uma queda em relação a 2018, quando foram 127 registros. Aqui vale uma observação: em 2018, os registros do Estado de Tocantins destoam, somando 82 registros para o tipo penal em específico. Nos anos seguintes, os registros caíram consideravelmente (3 em 2019, nenhum em 2020, 3 em 2021 e 5 em 2022). Ou seja, boa parte dessa queda se explica por essa particularidade dos registros de Tocantins em 2018.

De todo modo, a quantidade de registros é irrisória, ficando em média em uma dezena em cada UF. O mesmo panorama se repete no caso dos registros do art. 55 (extração de recursos minerais sem autorização) que passaram de 43, em 2018, para 35 em 2022, com o pico em 2021, quando foram 68 casos. Mesmo somando os dois tipos de crimes com registros nas polícias estaduais, chega-se ao total de 170 casos em 2018 e de 84 em 2022, uma queda de -50,6%, o que significa uma tendência contraditória, portanto, com os dados da PF e com os demais indicadores que evidenciaram o aumento do garimpo ilegal nesse período.

O que os dados inéditos coletados pelo FBSP junto às instituições policiais evidenciam, portanto, é que a atuação das polícias estaduais no registro, investigação e combate a crimes relacionados ao garimpo ilegal ainda é muito pontual diante do avanço desse tipo de criminalidade. Assim, se registros criminais de um modo geral estão necessariamente marcados por serem apenas um retrato aproximado do fenômeno da violência, nesse caso, para além da subnotificação, os dados mostram a incapacidade institucional das forças de segurança estaduais em agir no que se refere aos crimes do garimpo. Em relação ao desempenho da instituição policial da União, por outro lado, os indicadores, ainda que também marcados pela subnotificação, evidenciam uma atuação mais voltada para o combate a esses crimes.

* O texto original foi publicado no estudo Cartografias da Violência na Amazônia e pode ser lido na íntegra no link https://fontesegura.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2023/11/cartografias-violencia-amazonia-ed2.pdf
[1] OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO; SINAL DE FUMAÇA. Dinamite pura: como a política mineral do governo Bolsonaro (2019-2022) armou uma bomba climática e anti-indígena. Março, 2023, p. 11.
[2] O atual governo federal requisitou a retirada de tramitação do PL da Câmara dos Deputados.
[3] O CFEM é o imposto devido aos Estados, Municípios e órgãos da administração da União, como contraprestação pela utilização dos recursos minerais em seus respectivos territórios. Nos casos da extração de ouro em regime de PLG, o imposto é pago pelo primeiro adquirente do minério, ou seja, pelas DTVMs que funcionam como braços do Banco Central nos territórios. Assim, olhar para os dados de arrecadação de CFEM serve como uma proxy tanto da exploração de ouro legal, como da exploração de garimpo ilegal que é “esquentado” nas DTVMs.

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