Múltiplas Vozes 08/05/2024

A investigação de homicídio e Marielle

A Polícia Federal, embora reúna menos experiência como instituição na investigação de homicídios, na comparação com as polícias civis, tende a ser mais eficaz quando se trata de casos que envolvem a política local

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Existem vários modelos de investigação policial, um para cada tipo de delito: narcóticos, crimes contra o patrimônio, sequestro, homicídio etc. Esse último é aquele a respeito do qual as polícias brasileiras – e talvez também as do mundo – detêm mais know-how. Por conta disso, a proporção de casos resolvidos é sempre muito maior. No pior dos casos, racham (elucidam, se formos mais formais) mais de 30%. Já entre os roubos e furtos, por exemplo, a resolução é de menos de 5%.  Rachar, porém, é diferente de levar o culpado à Justiça. Algumas vezes existe quase certeza de quem foi, mas cadê as provas?

Em alguns inquéritos, o mandante é identificado em menos de dez dias. Mas, se não houver uma prisão em flagrante, a maioria deles demora meses, ou até anos, para ser resolvido. Segundo pesquisa feita pela Rand Corporation na década de 1970, não são muitas as circunstâncias que permitem a identificação do autor rapidamente. É necessário haver testemunhas diretas do crime, ou pelo menos alguém que afirme que o culpado confessou tê-lo feito ou afirmou que ia fazer. Em outros casos, mais raros, isso ocorre quando são encontrados vestígios no local que levam diretamente ao homicida. Na época, basicamente impressões digitais; hoje em dia DNA, deixado no corpo ou no local dos fatos. Outras circunstâncias, menos comuns, podem levar à identificação rápida, como ter apenas uma pessoa com acesso ao local ou o avistamento de um veículo na cena do crime, ou fugindo dele.

Na maioria desses inquéritos, porém, existe um tempo mais longo entre o crime e a identificação do autor e a coleta de provas contra ele. Normalmente, numa investigação, logo após o exame da cena e da verificação da existência de testemunhas, a primeira e mais importante providência é constatar cui bono – a quem beneficia a morte – ou quem detestava a vítima. Portanto, a investigação parte da biografia do morto, normalmente coligida entre seus parentes ou amigos. Entre os quais, aliás, pode estar escondido o assassino.

Num caso como o de Marielle e de seu motorista, a primeira providência ficou prejudicada. O aparato montado pela Polícia Civil para preservar o veículo e seu entorno simplesmente não levou em conta a busca de testemunhas do fato. Todos foram, literalmente, tocados de lá. Tanto que as duas testemunhas oculares só foram encontradas, uma semana depois, por uma repórter e por um amigo investigador de polícia que a auxiliou com sua expertise. Quanto à identificação dos interessados na morte, Marielle tinha muitos inimigos. Ou seja, uma extensa lista de interessados em sua morte.

Não havendo testemunhas, sempre se faz uma tentativa de estabelecimento de uma linha do tempo, com o histórico de onde esteve a vítima e com quem falou. No caso, isso inicialmente não levou a nada. Desde o início sabia-se de onde vinha e para onde ia. Só um tempo depois, quando as câmeras indicaram um mesmo veículo perto de onde ela estava, no local em que foi morta, é que se deu o primeiro passo. Mas isso não permitia chegar aos matadores, pois eles não foram identificados de imediato. Cerca de um ano depois, o motorista e o atirador foram presos, aparentemente identificados através de informantes policiais, cuja deduragem foi confirmada através do exame dos arquivos acessados por Ronnie Lessa (atirador) com seu celular. Através dos dados, armazenados na “nuvem”, descobriu-se que o suspeito monitorava Marielle. Quase simultaneamente a polícia chegou ao motorista, Élcio Queiroz.

Mas, ao contrário do que esperava a maioria, eles ficaram muito tempo calados, sem denunciar quem os havia contratado. O que é lógico, pois contavam com o respaldo de uma organização com dinheiro, além de serem sujeitos metidos a durões, do tipo que aguentam bem a cana.

Aí se caiu no dilema de como chegar ao mandante diante do silêncio dos homicidas. Vários indivíduos foram denunciados por outros informantes. Alguns, inclusive, foram aparentemente plantados, levando ainda mais confusão ao caso. Em todas as denúncias o problema permanecia, era só blablablá. Sem qualquer prova. Ainda mais por conta das dificuldades políticas, já que, segundo a denúncia da Polícia Federal, o chefe da Polícia Civil carioca tinha alguma ligação com os mandantes.

Entramos, então, na mudança que foi feita no ano passado, atribuindo a apuração à PF. Com isso, até o mais escolado dos matadores desistiu do silêncio e abriu o bico. Por quê? A PF o levou para o pau-de-arara, aterrorizou ou algo do tipo? Negativo. Na prática, há dois motivos. Um a ser levado em conta é que muito tempo de cana amolece até os mais durões. O segundo é que eles viram se desmanchar a cobertura que teriam, segundo o inquérito da PF, nos altos escalões da polícia. E a lógica que determinou as confissões permanece mais ou menos a do dilema do prisioneiro, o mais conhecido modelo da teoria dos jogos.

Dois prisioneiros, suspeitos de cometerem um crime, são interrogados separadamente. Se um dos prisioneiros confessar e o outro não, o que confessou ganha a liberdade e o que permaneceu em silêncio é condenado a dez anos de prisão. A ideia é que ambos acabem falando. O dilema dos matadores da vereadora foi quase esse, o primeiro a confessar poderia reduzir a pena. Em julho do ano passado, o bombeiro Élcio Queiroz assumiu que estava dirigindo o carro, que Ronnie Lessa foi quem atirou e indicou mais dois cúmplices; um já morto, o outro, livre. Quanto ao mandante, disse que não sabia, que seu colega é que havia negociado, coisas do tipo. Ou seja, a delação foi negociada em troca de pena menor, o que deixou uma brecha para o colega explorar. Agora, meses depois, foi a vez de este ceder, indicando os mandantes.

O resultado da investigação da PF levanta pontos importantes. O primeiro é que a negociação, desde que não seja levada a extremos, pode ajudar a elucidar crimes complexos. O segundo é que a PF, apesar de ter menos experiência como instituição na investigação de homicídios do que as polícias civis, tende a ser mais eficaz quando se trata de casos que envolvem a política local. E o último é que a ideia básica de cui bono continua válida. A não ser em casos nos quais um maluco mata alguém sem motivo aparente, sempre se deve trabalhar de acordo com a biografia da vítima. Ela normalmente leva aos possíveis assassinos.

Agora toca aguardar a manifestação da Justiça quanto aos mandantes, se as provas apresentadas são ou não suficientes. Foram dois passos importantes, a identificação dos autores e dos mandantes. O terceiro cabe àqueles que vão julgar o caso. Que foi, sem dúvida, o mais importante homicídio político das últimas décadas.

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