Múltiplas Vozes 03/09/2025

A indústria do fuzil: como a produção clandestina em São Paulo coroa quatro décadas de escalada bélica do crime organizado

A jornada desse tipo de armamento, do seu surgimento nas disputas de varejo do tráfico carioca até sua produção em série no polo industrial paulista, demonstra a impressionante capacidade de inovação e adaptação do crime organizado

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Roberto Uchôa

Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

A descoberta, no interior de São Paulo, de fábricas clandestinas equipadas com maquinário industrial de alta precisão para a produção em série de fuzis não é um evento isolado. É, na verdade, o clímax de uma crônica de quatro décadas que narra a busca incessante e a adaptação estratégica das organizações criminosas brasileiras por um poder de fogo cada vez maior. O que começou nos anos 80 com disputas territoriais no Rio de Janeiro, alimentadas por desvios de arsenais públicos e um incipiente contrabando, evoluiu para uma complexa operação logística transnacional, explorou brechas na legislação civil e, agora, atinge um novo patamar: a autonomia industrial. A ascensão dessas fábricas de “ghost guns”, armas sem número de série e irrastreáveis, representa um salto na capacidade do crime, consolidando uma demanda que nunca cessou e que redefine continuamente os desafios da segurança pública no país.

A história do fuzil como protagonista da violência urbana brasileira começa no Rio de Janeiro, entre as décadas de 80 e 90. Naquele período, a introdução dessa arma de guerra no arsenal do crime não foi uma resposta direta à ação policial, mas sim o resultado de um conflito horizontal. A disputa pelo controle dos lucrativos pontos de venda de drogas entre facções rivais, notadamente o Comando Vermelho (CV) e o então emergente Terceiro Comando (TC), deu início a uma feroz corrida armamentista. O objetivo era claro: alcançar a supremacia bélica para conquistar e manter territórios. A polícia, em um segundo momento, viu-se forçada a adotar uma doutrina reativa de “paridade de fogo”, equipando seus próprios agentes com fuzis para poder operar em um cenário de guerra já estabelecido pelos criminosos. Estava selado um ciclo de escalada militar que perdura até hoje.

Com a demanda estabelecida, a questão passou a ser a oferta. As primeiras fontes de abastecimento foram, paradoxalmente, o próprio Estado e as rotas de contrabando. Investigações ao longo dos anos revelaram uma rotina de desvios de armas e munições de quartéis militares e depósitos policiais, transformando arsenais públicos em um mercado fornecedor para facções e as incipientes milícias. Casos como o desaparecimento de metralhadoras calibre.50 de um quartel do Exército em São Paulo, posteriormente recuperadas no Rio, e a venda de fuzis apreendidos por policiais corruptos para facções rivais ilustram a profundidade da vulnerabilidade e da corrupção institucional, que até hoje segue sem ser enfrentada pelas autoridades. Simultaneamente, as redes criminosas profissionalizaram o tráfico internacional. Os Estados Unidos, com seu mercado de armas acessível, consolidaram-se como a principal origem indireta de fuzis, enquanto o Paraguai se tornou o grande entreposto logístico. Para otimizar a operação e mitigar riscos, os traficantes evoluíram do contrabando da arma completa para a importação de peças avulsas, que eram montadas no Brasil por “armeiros” a serviço do crime, um modelo que aumentava drasticamente as margens de lucro.

Um novo e significativo vetor de abastecimento surgiu entre 2019 e 2022, com a ampla flexibilização da legislação de armas promovida pelo governo de Jair Bolsonaro. A desregulamentação, que facilitou o acesso a fuzis e aumentou os limites de compra para a categoria de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs), foi rapidamente explorada pelo crime organizado. A categoria CAC transformou-se em um dos principais canais para o desvio de armamento moderno para o mercado ilegal. Criminosos passaram a usar “laranjas” para obter registros legais, adquirir arsenais e repassá-los diretamente para facções, como demonstram diversas operações policiais que prenderam CACs envolvidos na compra de volumes de munições e armas incompatíveis com a prática desportiva. Na prática, essa política funcionou como um subsídio não intencional ao poder de fogo do crime, que passou a contar com um mercado doméstico, legal e de baixo risco para se modernizar.

É nesse contexto de demanda incessante e diversificação de fontes que a descoberta das fábricas em São Paulo deve ser analisada. Elas representam a etapa final e mais sofisticada dessa evolução: a busca pela autossuficiência. Ao dominar a produção, as organizações criminosas se protegem da intensificação da fiscalização em fronteiras, do maior controle no mercado interno e da dependência de fornecedores internacionais. A capacidade de fabricar “ghost guns” em escala industrial, utilizando maquinário pesado e mão de obra especializada, por vezes em instalações disfarçadas de empresas legítimas, é um divisor de águas. Essas armas, sem qualquer registro, quebram a cadeia de rastreabilidade, tornando a investigação criminal exponencialmente mais difícil e garantindo um suprimento constante e anônimo para alimentar conflitos em todo o país.

A prova de que a demanda por fuzis segue em alta está nos números. Ano após ano, os estados brasileiros, com destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo, batem recordes de apreensão. Em 2024, o Rio de Janeiro retirou de circulação 732 fuzis, o maior número da série histórica. São Paulo viu suas apreensões saltarem de 111 em 2018 para 570 em 2024. Longe de serem apenas um indicador de sucesso policial, esses dados revelam um “paradoxo da apreensão”: um aumento no número de armas retiradas das ruas implica, necessariamente, um volume muito maior que entrou e permanece em circulação, considerando que as estimativas apontam que apenas uma pequena fração do arsenal ilegal é de fato interceptada.

A jornada do fuzil, do seu surgimento nas disputas de varejo do tráfico carioca até sua produção em série no polo industrial paulista, demonstra a impressionante capacidade de inovação e adaptação do crime organizado. Cada ação do Estado foi seguida por uma reação estratégica que abriu novas frentes de abastecimento. A descoberta das fábricas clandestinas não é o fim da história, mas um alerta contundente de que a guerra urbana no Brasil entrou em uma nova fase, mais autônoma e industrializada. O desafio para as forças de segurança agora transcende o confronto tático e a fiscalização de fronteiras; ele exige um combate focado em investigação, descapitalização financeira e, crucialmente, na capacidade de desarticular as cadeias produtivas que transformaram o fuzil em um produto de fabricação nacional para o crime.

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