A hora e a vez das guardas municipais no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)
O Estatuto Geral das Guardas Municipais colaborou para a superação de um limbo normativo que obstaculizou, historicamente, sua afirmação como principal órgão de segurança pública municipal
Eduardo Pazinato
Advogado e professor universitário. Mestre em Direito (UFSC) e doutor em Políticas Públicas (UFRGS). Professor convidado da Universidade do Chile, Insper e Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Associado Sênior e Conselheiro de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ex-secretário de Segurança e Cidadania de Canoas/RS e ex-Conselheiro Nacional de Segurança Pública
A transição da ditadura civil-militar, a miopia político-normativa de interpretações limitadas da segurança pública municipal, adstrita ao art. 144, §8º da Constituição Federal, no lugar de uma hermenêutica mais sistêmica e ampliada da segurança como um direito social, com base na inteligência do art. 6º, a colonização das guardas municipais pelas polícias militares e a falta de uma maior e melhor regulamentação do poder de polícia administrativo (sentido estrito) em um país federado continental de natureza trina (União, Estados e Municípios) relegaram, no final dos anos 80 e 90 do século passado, as guardas municipais à tarefa de mera zeladoria do patrimônio físico e material – bens, serviços e instalações públicas municipais.
Foi somente em princípios dos anos 2000, na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que os municípios e as guardas municipais lograram, ainda que de forma mitigada, desempenhar algum protagonismo no modelo federativo da segurança pública brasileira, a partir do advento do I Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) e da edição da Lei nº 10.201/2001, que criava o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).
Posteriormente, no primeiro governo do presidente Lula, em 2003, sobrevieram o II PNSP e o finado Estatuto do Desarmamento, respectivamente, reforçando o caráter preventivo da atuação dos municípios na segurança pública e franqueando a possibilidade do acesso a armas de fogo pelas guardas municipais no contexto dos demais meios de força necessários para o exercício das suas atividades profissionais de segurança pública básica[1] nas cidades. Não obstante, o maior estímulo federativo para o fortalecimento da gestão integrada da segurança pública municipal, de um lado, e, de outro, para o reconhecimento legítimo das guardas municipais como principal agência de prevenção das violências e de promoção dos direitos desde o poder local apenas se materializaram no período de 2007 a 2012 com o então inédito Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), reservando recursos, anualmente, cinco vezes superiores ao disponibilizado pelo FNSP para um conjunto de projetos e ações, com financiamento direto entre a União e os municípios para o aprimoramento da capacidade estatal da segurança pública municipal.
Com o primeiro governo da presidente Dilma Rousseff, todavia – e paradoxalmente, o PRONASCI morreu e com ele também feneceu parte substantiva do acúmulo empírico, técnico e científico da agenda nacional de segurança pública cidadã baseada em evidências e nas melhores práticas internacionais. Nos estertores do seu segundo mandato, interrompido por um golpe parlamentar flagrantemente inconstitucional, em função da mobilização de gestores públicos municipais de segurança e guardas municipais de todo o país, nasceu a Lei Federal n.º 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais), que passou a viger, depois de dois anos de vacatio legis, em agosto de 2016, constituindo-se em um novo marco normativo para disciplinar e regular a prática profissional dessa instituição no Brasil.
O referido Estatuto ensejou a passagem de uma guarda patrimonial, cuidadora de coisas, para uma guarda comunitária, cuidadora do maior patrimônio público municipal: as pessoas. Essa nova legislação, que completa em 2024 dez anos de existência, colaborou, apesar dos desafios ainda existentes, para a superação de um limbo normativo que obstaculizou, historicamente, sua afirmação como principal órgão de segurança pública municipal.
A Lei Federal n.º 13.022/2014, ao regulamentar o §8º do art. 144 da Constituição Federal, formalizou em seu art. 5º 18 atribuições possíveis das guardas municipais, oferecendo balizas para regular, normativa e institucionalmente, as suas múltiplas identidades e legitimidades no complexo e pouco articulado sistema de segurança pública e justiça criminal do Brasil.
Por isso, as guardas municipais não só podem como devem exercer um papel relevante na mediação (e restauração) de conflitos (interpessoais e coletivos), em especial aqueles que emergem nas escolas, em estreita cooperação com as demais polícias e órgãos de justiça, agências com poder de polícia administrativo (vigilância sanitária, meio ambiente e sustentabilidade, regulação administrativa do espaço urbano, fiscalização municipal) e, ainda, com aquelas voltadas a efetivar a segurança de outros direitos fundamentais, tais como a educação, a saúde, a moradia, a mobilidade urbana, a cultura, o esporte e lazer, entre outras.
Com efeito, pode-se aduzir que a emergência de um marco regulatório para disciplinar a atuação das guardas municipais no país, ao agregar à função de “proteção municipal preventiva”, chancelou um consenso mínimo em torno da sua identidade, relevância e legitimidade. Esse entendimento ganhou, ao longo do tempo, ainda maior robustez jurídica e densidade técnica com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei Federal n.º 13.675/2018, que restou conhecida como a Lei do Sistema Único de Segurança Pública (“Lei do SUSP”).
A “Lei do SUSP”, aprovada, mais um paradoxo nacional, por iniciativa de um governo ilegítimo, sob a liderança do primeiro – e único, até o momento, ministro da Segurança Pública brasileiro, o experimentado parlamentar e gestor público Raul Jungmann, regulamentou, por sua vez, o §7º do art. 144/CF, sacramentando a assunção dos municípios e das guardas municipais como órgãos de segurança pública.
Ora, em qualquer vista do ponto, uma interpretação conforme a Constituição Federal de 1988 – da segurança como um direito social, com eficácia vinculativa a todos os entes federados nacionais (e entre estes e a cidadania) e sistemática das Leis Federais n.º 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) combinada com a 13.675/2018 (Lei do SUSP) denotam a transição paradigmática por que passam as guardas municipais no país, ao longo de mais de 35 anos, tomando por base a CF de 1988, como instituição de força, verdadeiras polícias municipais responsáveis por preservar e zelar pelas pessoas – aquelas que circulam nas ruas e logradouros públicos, nas esquinas e territórios de cidades de diferentes tamanhos e populações, nas suas praças e parques, escolas, unidades básicas de saúde (UBS), de pronto-atendimento (UPA) e de alta complexidade (hospitais), nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e suas unidades especializadas (CREAS), entre outros.
A natureza eminentemente técnica do tema, demasiadamente hermética e pouco corriqueira no debate público, as disputas de poder inerentes ao campo, sobretudo junto aos oficiais das Polícias Militares, como também o crescimento quali e quantitativo das guardas municipais nesse período (cerca de 1500 Municípios brasileiros possuem guardas municipais, totalizando um contingente aproximado de mais de 125 mil profissionais, cerca de 1/4 das polícias existentes no país) motivaram a proposição de várias ações judiciais nos tribunais superiores, especialmente junto ao STF. Em agosto de 2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995 da AGM Brasil, firmou entendimento, com efeitos erga omnes (vinculantes), de que as guardas municipais são instituição integrante e operacional do SUSP, de acordo com o disposto no art. 9º, §2º, inc. VII da Lei Federal, ao lado das demais polícias estaduais e federais.
Finalmente, em 22 de abril de 2024, o ministro do STF Flavio Dino, como relator da Reclamação 62.455 ajuizada pela Associação Nacional de Altos Estudos de Guarda Municipal, insurgindo-se em face também do que acertadamente nominou de “subjetivismos inerentes à orientação do Superior Tribunal de Justiça”, asseverou: “(…) faz parte das responsabilidades das guardas municipais interromper atividades criminosas ou infracionais, realizando prisões ou apreensões em flagrante, bem como busca pessoal quando houver fundadas razões para tanto (art. 244 do CPP). Essa atuação é fundamental para proteger a população e colaborar com os demais órgãos da segurança pública, de forma a contribuir significativamente para a manutenção da paz social.”
Eis a hora e a vez das guardas municipais em prol da construção de uma governança integrada e inteligente da segurança pública municipal básica do séc. XXI!