Análises criminais 17/07/2024

A geografia do crime

Como entender a migração da criminalidade do centro da capital paulista para bairros mais distantes

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Um fato mais que sabido entre as pessoas que lidam com segurança pública é que o crime não é estático. Isso significa que criminosos profissionais sempre inovam. Quando uma prática se torna perigosa ou pouco rentável, eles inventam outras formas de obter seu ganho ilícito.

Um exemplo é a mudança ocorrida anos atrás no roubo a banco. Quando o dinheiro à disposição nos caixas foi diminuindo, a resposta policial ficou mais rápida devido à diminuição do tempo de resposta aos alarmes e o sistema de câmeras evoluiu, muitos deles optaram pelo estouro de caixas eletrônicos, grandes roubos a transportadoras de valores, assaltos aos indivíduos que saíam do banco com muito dinheiro, etc. Cada uma dessas modalidades implicava em aprendizado, portanto as primeiras ações muitas vezes foram mal executadas. Um dos exemplos mais notórios é a explosão dos “caixinhas”. Nos primeiros tempos o explosivo podia ser pouco, o que não arrombava o equipamento, ou demasiado, estraçalhando o dinheiro junto com o caixa. Aos poucos aprenderam a dosar a bomba e ficar com a maior parte (ou todo) o dinheiro. E organizaram cada vez melhor a logística, identificando o horário que passavam os policiais e as rotas de fuga.

Outro tipo de adaptação diz respeito aos locais onde praticam seus crimes, o que implica duas variáveis: policiamento e existência de alvos. Os crimes da moda, neste momento, são o furto e o roubo de celulares. Portanto, eles tendem a escolher regiões onde esses aparelhos são abundantes. O centro de São Paulo, nos últimos dois ou três anos, foi um dos pontos de concentração de atos do tipo, principalmente o furto. Nesses casos, o ladrão se aproxima a pé ou de bicicleta do alvo, toma o celular de sua mão e sai em disparada, normalmente na contramão dos locais onde circulam veículos, com o fito de atrapalhar uma possível perseguição policial. Que normalmente não ocorre, aliás.

Já os roubos são praticados, na maior parte das vezes, por duplas, ou mais indivíduos, às vezes armados com arma branca ou de fogo. Assustam a vítima, encurralam-na num canto qualquer, subtraem o celular e a carteira e saem rapidamente, um para cada lado.

E essa tática tem dado muito certo nos últimos anos, já que se livram rapidamente da res furtiva, entregando a um comparsa e, se por uma eventualidade forem abordados por policiais, não carregam nada consigo. Depois o celular é entregue a um receptador que paga de 150 a 400 reais por ele, dependendo do modelo e marca. Só que o tempo de bonança nunca é eterno. Uma hora ou outra a polícia atenta para o fato, modifica os padrões de policiamento e aí a coisa muda.

Segundo recente reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, essa modalidade tem migrado para as regiões próximas ao centro. A reportagem citada menciona especificamente o bairro de Perdizes, que não deve ser o único da região a sofrer com essa tendência. Lá existem pessoas de razoável poder aquisitivo, portanto com probabilidade de possuir celulares caros. Com o aumento do policiamento no centro, em parte eleitoreiro, tanto por parte da Polícia Militar como da Guarda Metropolitana, nada melhor que mudar a área de atuação, o que também é comum. Normalmente até o ladrão mais estúpido sabe que não pode roubar em local onde a polícia está de olho. Se a patrulha, por exemplo, está em uma esquina, o ladrão age em outra.

Nunca muito longe de onde reside, mas também não próximo demais. Pesquisa da qual participei na UNICAMP, há mais de trinta anos, mostrou que, tanto em São Paulo como em Campinas, enquanto os homicidas normalmente matavam alguém em seu próprio bairro, ou próximo a ele, os ladrões tendiam a agir um pouco mais distante, no DP vizinho, geralmente. A causa é simples. O homicida normalmente mata por motivo pessoal, portanto é um parente, conhecido ou mesmo vizinho. Já para o ladrão o crime é um “trabalho”[1]. Ele pensa nas consequências de seus atos, e não quer que ninguém o reconheça. Por isso, pesquisa recente sobre o crime no centro paulistano, elaborada pelo FBSP, mostrou que muitos dos que atuavam na região da República, Consolação e mesmo na Sé, moravam, ou moram, na Bela Vista ou Santa Cecília, que não eram locais tão visados como os de maior incidência desses roubos e furtos.

Aliás, trazer mais polícia para determinadas regiões do centro significa vulnerabilizar outras próximas, pelo menos momentaneamente. Como sempre digo, e ouço outros dizerem, policiamentos são como cobertor curto. Se cobrimos uma parte, descobrimos outra. Portanto, mudar de A para B serve apenas para dar uma satisfação momentânea às queixas dos habitantes e usuários de um local[2]. Aos poucos, porém, outros bairros acabam sendo os principais pontos de convergência criminal.

A única solução, policial, que se pode entrever, é melhorar a investigação, indo atrás não só dos ladrões como também dos receptadores, sem os quais o número de celulares roubados e/ou seria incrivelmente menor.

Mas isso depende, entre outras coisas, de reequipar a Polícia Civil, principalmente aumentando seus efetivos. E isso o Estado aparentemente não pretende fazer no curto prazo. Os atuais concursos vão apenas manter as coisas como estão, uma vez que, além de contar com um contingente reduzido, a PC também está envelhecida. Além disso é necessário desburocratizar o trabalho, focando as atividades dessa instituição na investigação, já que atualmente está mais centrada apenas na produção de papeis, registros de ocorrência e condução de inquéritos sobre crimes de autoria conhecida. Com essas duas medidas seria possível haver mais investigadores atuando de fato nas regiões mais atingidas, já que só com muito trabalho de rua se pode conhecer o seu público alvo, a criminalidade local. É um remédio de médio prazo, e não tão espetaculoso como ver viaturas da PM correndo de um lado para outro. Mas sem ele o paciente não tem condições de melhora.

 

[1] Aliás é assim que se referem ao roubo. Em casa e para os amigos dizem que vão trabalhar, e as vezes combinam entre si áreas de atuação, para não trombarem.
[2] O mesmo ocorre quando os “noias” da Cracolândia são forçados a ir de um quarteirão para outro. Alívio num local significa apenas o começo dos problemas em outro

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