Profissão Polícia 02/05/2024

A formação da (pela) violência institucional: modelos policiais e tradição

A denúncia de tortura cometida em um curso de especialização policial militar recoloca o debate sobre o perfil profissional e os métodos de formação e de especialização adotados nas escolas de segurança pública

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Gilvan Gomes da Silva

1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)

No dia 29 de abril, quase uma semana após a celebração do dia do policial militar, houve a prisão de 13 policiais militares por denúncia de tortura em um curso de formação de Patrulhamento Tático Móvel (PATAMO). A 3ª Promotoria de Justiça Militar do MPDFT requereu a prisão por 30 dias dos policiais militares possivelmente envolvidos (entre eles soldados, sargentos, tenentes e capitão), apreensão dos aparelhos telefônicos celulares, a suspensão do Curso de PATAMO, busca e apreensão no Batalhão de Choque, assim como o afastamento do comandante da unidade. Neste caso, a denúncia de tortura cometida em um curso de especialização policial militar representa mais que possíveis ações individuais ou de um grupo de instrutores e alunos e recoloca o debate sobre o perfil profissional e os métodos de formação e de especialização adotados nas escolas de segurança pública.

Os cursos de formação e de especialização policiais militares, por serem de instituições com características de instituições totais, têm duas características: de formação e de fazer parte dos ritos de passagem. Os editais de seleção, tanto para formação de soldado policial militar quanto de cursos de especializações, apresentam informações subjetivas sobre quais competências e habilidades são necessárias para o exercício profissional, pois ainda há um debate sobre quais são elas. Nesse sentido, cada instituição policial militar e até mesmo cada batalhão especializado adota uma doutrina como referência.

Quanto às características de formação, uma das referências é a experiência policial acumulada. Nesse sentido, algumas atividades estão voltadas para “suportar física e mentalmente” o que a profissão exige. Assim se molda um discurso de necessidade de formação “robusta”. Ficar dez horas em pé em uma manifestação ou horas esperando os ritos de uma ocorrência, ficar “sob sol e chuva”, entre outras peculiaridades. Assim, realizam atividades de esgotamento físico e mental durante o curso de formação. Todavia, esta forma do exercício da atividade com sofrimento está relacionada à condição de trabalho (baixa quantidade de policiais, poucos recursos logísticos e tecnológicos, entre outros) e à política de segurança pública (estratégia de aumento de sensação de segurança ou redução da criminalidade, por exemplo) do que especificamente da atividade policial militar.

Assim, a parte formativa, mesmo com referência à atividade, está imbricada com sofrimento. São poucos os anúncios de que determinado sofrimento é para “capacitar”. Os raros anúncios de sofrimento para capacitar para a atividade profissional estão relacionados à exposição dos dispositivos menos letais como, por exemplo, gases para controle de distúrbio, armas de incapacitação neuromuscular, participação em acampamentos, entre outras. Há também as atividades específicas, algumas vezes com grande risco, como o exemplo fatal que vitimou o Tenente alagoano ao participar de um treinamento de “administração do pânico” que consistia em mergulhar e passar por uma manilha no Curso de Cinotecnia promovido pela PMDF e com a atividade coordenada pelo Corpo de Bombeiros Militar do DF.

A intersecção do sofrimento de formação para o de rito de passagem é realizada nos atos cotidianos, mediados pelos currículos ocultos, mas que são orientados tanto pela lógica da robustez quanto de quem deve pertencer ao grupo. Fábio Gomes de França e Robson Rodrigues analisaram a “pagação[1]” como elemento de distinção e para causar sofrimento ao corpo. Sob a ótica dos autores, podemos perceber que há vários outros “tipos de pagação” que vão além dos exercícios de flexão de braço. Os tipos de “pagação” (ou tarefas) podem variar de acordo com o tipo de curso e com a finalidade (punição ou distinção) e o corpo docente e de instrutores são os mediadores deste processo, pois são “o espelho do curso” e o filtro avaliativo constante.

Para as tarefas de distinção, como rito de passagem, é uma ação que vai além do aprendizado da doutrina adotada ou da eficácia e da eficiência específicas das atividades policiais ou de segurança; mas principalmente se houve a demonstração de merecimento de ser do grupo. Nos cursos de formação, se o aluno merece ser policial militar, e não mais um paisano (não militar); e nos cursos de especialização se merecem ser reconhecidos como um detentor de brevê, e não mais um “comum”.  A gradação dos diversos tipos de sofrimentos nos ritos de passagens está relacionada ao tipo ideal de profissional. Entretanto, os processos rituais não estão necessariamente relacionados às atividades profissionais. Estão relacionadas a “pagar a cota”, submeter aos valores, disciplina e distinção do grupo. E quanto maior o capital simbólico, maior a dívida de sofrimento que tem que cumprir. Por isso que o número de concluintes é sempre menor dos matriculados, pois não é um curso ou um grupo para todos; e o número de participantes é inversamente proporcional ao prestígio no grupo.

Interessante que essas lógicas transcendem a instituição policial militar. Fábio Gomes França também analisou  fatos ocorridos no curso de formação de oficiais do Corpo de Bombeiro na Paraíba e percebeu similaridades na formação pelo sofrimento. Para o pesquisador, “tais condições de violência institucional no mundo militar são geralmente alimentadas pelo desejo por autoridade e pela incipiente concepção da aprendizagem pelo sofrimento, a qual se mostra vazia de conteúdo”.

Em uma rápida pesquisa é possível constatar que há registros letais durante cursos de formação ou especialização, por quebras de protocolos ou excesso de atividades físicas, como ocorrido no Rio de Janeiro, em Mato Grosso, em Alagoas, entre outros casos. Cabe ressaltar que a ausência dos registros não significa ausência de sofrimento e de violências institucionais nos cursos. Talvez a grande quantidade de registros das desistências nos cursos, que houve a matrícula voluntária e submissão a diversas etapas seletivas, pode ser uma evidência a ser considerada para analisar a formação pela e da violência.

Portanto, todas estas lógicas estão vinculadas ao ideal de agente de segurança para o combate, de manutenção da ordem, orientado pela tradição institucional e pela política de segurança pública local, regional e nacional. Não estão relacionadas aos agentes de segurança que mediam conflitos e garantem a manutenção dos direitos de grupos vulnerabilizados, com técnicas cientificamente fundamentadas. A diminuição da violência institucional está diretamente relacionada a diminuição da “rusticidade” do ideal de profissional de segurança pública tradicional, da mudança de capital simbólico, das condições de trabalho e, principalmente, da adoção de preceitos científicos e de evidencias orientadoras das políticas de segurança pública.

[1] Punição “pedagógica” utilizado ao ser percebido qualquer tipo de erro. Nos estudos de França e Silva, foram analisados cursos de formação e como o exercício de flexão de braços é instrumentalizado no meio militar para proporcionar sofrimento e distinção. França, Fábio Gomes de; Silva, Róbson Rodrigues da. Revista Antropolítica, v. 54, n. 3, Niterói, p. 485-510, 3. quadri., set./dez., 2022

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