Segurança Pública na Amazônia 25/10/2023

A emergência de um necrocapitalismo na Amazônia

A violência deixa de ser função de alguns no processo mais amplo de acumulação capitalista na Amazônia para compor o imaginário social e se enraizar nas práticas cotidianas de pequenos municípios, vilas e comunidades hegemonizadas por uma economia política da morte

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Bruno Malheiro

Geógrafo. Professor e pesquisador da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNFESSPA)

Em 5 de junho de 2022 desapareciam, no Vale do Javari, o indigenista Bruno Araújo e o jornalista Dom Phillips, no exercício da ação mais digna do nosso tempo: a defesa dos povos amazônicos! Passado mais de um ano das mortes, as relações que produziram os assassinatos permanecem na Amazônia.

A morte sempre foi uma realidade próxima para quem se coloca no caminho dos interesses dos que drenam as energias vitais amazônicas, por meio da agropecuária, da mineração, de monocultivos, do garimpo… E o pior, no espelho colonial que se chamou Brasil, a morte sempre foi a única forma de sensibilização para a vida por essas bandas. Mas, nessa região, o ato de matar historicamente esteve restrito a alguns profissionais da morte. Sempre foram jagunços contratados ou as próprias forças de segurança do Estado os responsáveis por assassinatos e massacres, de Eldorado de Carajás à Pau D’arco, a engrenagem de matar era protagonizada por atores semelhantes. A herança do governo Bolsonaro, entretanto, foi destampar mais um bueiro dessa máquina de moer mundos.

Ao incentivar formas brutais de expansão capitalista, ao deslegitimar todos os órgãos de fiscalização e controle ambiental, ao desmobilizar todos os órgãos e entidades de defesa dos povos amazônicos, ao, por fim, incentivar uma lógica bélica de defesa da propriedade e da riqueza privada (visível na explosão de clubes de tiro), um arranjo violento de relações criminosas vai se expandindo de forma avassaladora.

Os rápidos ganhos que a drenagem de matéria e energia gera continuam sendo o motor da expansão capitalista. No entanto, além dos grandes bancos, grandes corretoras e grandes corporações e seus velhos arranjos com frações da burguesia e do latifúndio regional, tornam-se atores cada vez mais comuns em tais negócios, organizações criminosas, redes do narcotráfico, milícias armadas e novos investidores capazes de tudo para obter lucro rápido. Essa engrenagem funciona basicamente transformando terras indígenas em garimpo, territórios quilombolas em mais pasto, ou seja, bens comuns em mercadoria por meio da violência extrema. Mas a possibilidade de ganhos rápidos que passa por atores tradicionalmente violentos, passa, também, por muita gente desesperada por não ter o que comer.

Os donos da terra, os donos do dinheiro e, agora, os donos das drogas, e/ou seus atravessadores, além de uma rede complexa de pessoas compradas com dinheiro, terra e drogas passam a ser os agentes da morte. Nesse cenário, qualquer um pode ser o alvo e qualquer um pode puxar o gatilho. Vidas humanas e vidas não humanas não importam mais diante desse necrocapitalismo.

O que estamos dizendo é que a violência deixa de ser uma função de alguns no processo mais amplo de acumulação capitalista na Amazônia para compor o imaginário social e se enraizar nas práticas cotidianas de pequenos municípios, vilas e comunidades hegemonizadas por uma economia política da morte. Não sem razão os municípios hegemonizados por essas relações na Amazônia deram, em 2022, vitória eleitoral a Bolsonaro (MALHEIRO, 2023 – Geografias do Bolsonarismo).

Para esse necrocapitalismo funcionar, todas as ameaças devem ser eliminadas. Qualquer um que se coloque no caminho desses ganhos rápidos recebe um alvo nas costas. A violência se irradia por todos aqueles conectados a essa engrenagem e o ato de matar, antes restrito aos profissionais da morte, passa a ser praticado por quem estiver em condições de eliminar os alvos. Os quatro anos de governo Bolsonaro transformaram essa engrenagem na regra de geração de riqueza na Amazônia.

Esse necrocapitalismo, é bom que se diga, não se restringe às atividades econômicas chamadas de ilegais. É um engano restringir sua abrangência a elas, uma vez que historicamente a expansão capitalista na Amazônia também é um movimento de tornar legal e legítimo o absurdo. Conseguimos produzir Belo Monte, conseguimos aceitar que a empresa responsável pelos dois maiores crimes ambientais da história do Brasil minere quase 6,5 bilhões de toneladas de ferro em 22 anos na província mineral de Carajás, conseguimos aceitar a interiorização da pata do boi, a substituição de floresta por monocultivos de soja, de milho, de dendê… Enfim, continuamos aceitando a violência dos negócios que mercantilizam a vida para que tenhamos superávit primário. O necrocapitalismo dos garimpos ilegais está também na megamineração, nos monocultivos, na pecuária extensiva e, inclusive, esses capitais, que parecem tão distantes, estão mais próximos do que imaginamos…

A herança do governo Bolsonaro na Amazônia é a generalização desse necrocapitalismo. E não nos parece  que enfrentar esse legado passe por autorizar a exploração de petróleo na foz do Amazonas, nem a abertura de novas frentes de expansão de monocultivos via obras financiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC3), muito menos pelo financiamento bilionário do agronegócio via Plano Safra. Até aqui, embora os discursos dourem a pílula, o necrocapitalismo segue seu curso de morte com apoio do Estado brasileiro.

O que chamamos de necrocapitalismo talvez seja melhor entendido como uma guerra incessante contra a vida, uma guerra de todos nós, uma vez que a expropriação das energias vitais amazônicas interfere nos rumos de todo o planeta.

Bruno e Dom sabiam disso. E por isso foram assassinados.

Não é possível que continuemos escolhendo morrer e matar. A dignidade da luta em defesa dos povos amazônicos de Bruno e Dom precisa ser posta em toda sua potência transformadora para que saiamos  do assombro e caminhemos para uma luta coletiva em defesa da vida. Essa é uma luta para colocar no centro do mundo os mundos amazônicos! Essa é uma luta em defesa de povos que nos legaram a possibilidade de vida no planeta ao coevoluírem com a Amazônia.

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