Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociólogo, Professor Titular da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC, pesquisador do CNPq
Fernanda Bestetti de Vasconcellos
Socióloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC
O Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou no dia 26 de junho o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e estabeleceu a quantidade de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas como o limite para a diferenciação (presumida) entre usuário e traficante. Oito ministros se manifestaram pela descriminalização de usuários (Gilmar Mendes – relator, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia), e três, contrários (Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques).
A decisão representa um marco importante na política de controle de drogas no Brasil. De acordo com a decisão, a aquisição, guarda, transporte ou porte de cannabis sativa para consumo pessoal não constituem mais infração penal, embora essas ações ainda sejam consideradas ilícitas extrapenalmente. A decisão está alinhada com uma tendência global em que várias nações estão reavaliando suas políticas de drogas em favor de modelos despenalizantes. Portugal, por exemplo, descriminalizou todas as drogas em 2001, adotando uma abordagem de saúde pública que resultou em significativas reduções no consumo de drogas, infecções por HIV e overdoses. No caso do Brasil, a decisão do STF pode abrir caminho para reformas semelhantes.
Embora a decisão do STF seja um avanço, ela é limitada por se restringir apenas à maconha. Em comparação com outras cortes constitucionais na América Latina, como as da Argentina e do México, que avançaram em descriminalizar o porte de qualquer droga para uso pessoal, a decisão brasileira é tímida e pouco consistente, uma vez que a lei fala em porte para uso pessoal de qualquer droga proibida por portaria da ANVISA. A descriminalização seletiva contraria o princípio da lesividade em matéria penal, que sugere que apenas condutas que causem dano significativo a terceiros devem ser criminalizadas, e estabelece um tratamento desigual em relação aos usuários. Na Argentina, a Corte Suprema, no caso “Arriola” (2009), decidiu que a penalização do uso de drogas para consumo pessoal em ambientes privados viola a Constituição. Da mesma forma, no México, a Suprema Corte de Justiça descriminalizou a posse de pequenas quantidades de todas as drogas, argumentando que as políticas punitivas violam o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
De qualquer forma, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal abre espaço para que a questão seja tratada pelo direito administrativo, com sanções pecuniárias e medidas educativas. Contudo, a decisão não esclarece se estados e municípios poderão legislar sobre a matéria, criando um potencial vácuo legal. Essa indefinição pode gerar conflitos de competência e dificultar a implementação de políticas públicas coerentes e eficazes. Uma regulamentação clara e uniforme é essencial para evitar interpretações divergentes e garantir que as novas diretrizes sejam aplicadas de maneira coerente em todo o país. Além disso, a transição para um modelo de sanções administrativas deve ser acompanhada por um sistema robusto de prevenção e tratamento do uso problemático de drogas, com programas educativos, serviços de saúde acessíveis e campanhas de conscientização. Em países como a Suíça, programas de redução de danos, como salas de consumo seguro e distribuição controlada de heroína, têm mostrado eficácia na redução de danos à saúde e na reintegração social dos usuários.
A decisão do STF estabelece que a posse de até 40 gramas de maconha ou 6 plantas fêmeas presumirá uso pessoal, o que é um avanço significativo. A presunção de uso pessoal permite um enfoque mais humano e proporcional ao tratamento de usuários, ao mesmo tempo que libera recursos policiais e judiciais para combater crimes mais graves. Países como República Tcheca e Espanha adotam abordagens semelhantes, que não criminalizam por posse de pequenas quantidades de drogas. Essas políticas reconhecem a diferença entre usuários e traficantes, e buscam evitar a estigmatização e marginalização dos primeiros.
Para avançar ainda mais, é necessário considerar a regulação do mercado da cannabis, como feito no Uruguai e no Canadá. Esses países implementaram sistemas que permitem a produção e venda legal de maconha, gerando receitas tributárias, criando empregos e reduzindo o mercado ilegal. A regulação oferece um modelo de controle mais eficaz do que a simples descriminalização, ao mesmo tempo que garante a qualidade do produto e protege os consumidores. No Uruguai, a legalização da cannabis em 2013 estabeleceu um controle estatal sobre toda a cadeia de produção e distribuição. O Canadá, que legalizou a cannabis em 2018, adotou um modelo que permite a venda tanto em lojas estatais quanto privadas, com regulamentações rigorosas para proteger a saúde pública, evitar o acesso de menores e combater o mercado ilegal.
A preocupação de que a descriminalização poderia aumentar o consumo de maconha é infundada. Estudos mostram que políticas de descriminalização e regulação não necessariamente resultam em maior consumo. Por exemplo, após a legalização da cannabis no Colorado e em Nevada, nos Estados Unidos, os dados indicaram apenas aumentos modestos no uso adulto, e estabilidade no consumo juvenil. A Islândia, que já enfrentou epidemia de uso problemático de drogas, implementou programas de prevenção abrangentes que resultaram em uma significativa redução no uso de drogas entre jovens.
A decisão também não enfrenta o problema da criminalização de pequenos vendedores de drogas, que sofrem diretamente com o proibicionismo e o encarceramento. Esses indivíduos, muitas vezes oriundos de comunidades marginalizadas, são presos por longos períodos, sem que isso afete significativamente o mercado de drogas. É imperativo repensar essa abordagem, focando em políticas que reduzam a demanda e ofereçam alternativas socioeconômicas para essas populações vulneráveis. Estudos mostram que a maioria das pessoas presas por tráfico de drogas é formada por pequenos vendedores ou “mulas”, que desempenham papéis menores e facilmente substituíveis nas redes de tráfico. Políticas que visam alternativas penais, como programas de reintegração social e oportunidades de emprego, têm o potencial de reduzir a reincidência e os impactos negativos do encarceramento massivo. Uma política de drogas que pretenda avançar sobre estas questões precisa encarar as causas socioeconômicas e culturais do envolvimento no tráfico, e os limites da alternativa punitiva, que muitas vezes reforça e perpetua o problema.
A análise dos dados do Infopen revela que o Brasil enfrenta uma crise significativa de superlotação carcerária, com aproximadamente 28% da população carcerária composta por indivíduos condenados por crimes relacionados ao tráfico de drogas, frequentemente associados a quantidades mínimas de entorpecentes, sugerindo um perfil de pequenos vendedores e usuários. Cumpre destacar, como faz Angeli, pesquisa do Insper que mostrou que, entre 2010 e 2020, 31 mil negros foram considerados traficantes em situações similares às de brancos usuários no estado de São Paulo, corroborando dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que indicam que, desde a entrada em vigor da atual lei de drogas, que aumentou a pena mínima para o delito de tráfico, a população branca encarcerada cresceu 215% entre 2005 e 2022, enquanto a população negra cresceu 381,3%.
Por outro lado, estudo do IPEA sugere que a descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha poderia impactar a seletividade penal que afeta desproporcionalmente jovens negros e de baixa escolaridade. No entanto, os resultados da pesquisa apontam que, ao estabelecer quantidade mínima para a caracterização do tráfico somente para a maconha, o impacto será pequeno. Semmer e Campos apontam, com base no estudo “Pela Metade: A Lei de Drogas no Brasil”, que em 50% dos registros de ocorrência por suposto tráfico de drogas em bairros de periferia da cidade de São Paulo, a quantidade de droga apreendida não ultrapassa 7 gramas, e que há maior chance de enquadramento por tráfico de usuários de cocaína portando pequenas quantidades.
A partir da decisão do STF, não há grandes alterações com relação à abordagem policial. Se o fato for configurado como porte para uso pessoal, o indivíduo será encaminhado ao Juizado Especial Criminal, ainda que não seja considerado crime. Nos estados em que as polícias militares têm autorização para a elaboração do termo circunstanciado, o policial militar poderá continuar elaborando o TC para casos de apreensão de maconha que caracterizem a situação de porte para uso pessoal, que podem ocorrer inclusive com quantidades maiores da droga, desde que evidenciado que não destinada à comercialização. Para estes casos, a decisão do STF manteve as sanções de advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, e afastou a sanção de prestação de serviços à comunidade, por considerá-la de natureza penal. Em casos em que haja indicativos de que a droga estaria sendo comercializada, o encaminhamento continua à cargo da Polícia Civil, com o devido inquérito policial.
Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já estão revisando processos em que a nova orientação pode ser aplicada. A ministra Daniela Teixeira, da 5ª Turma do STJ, e os ministros Rogerio Schietti e Sebastião Reis Júnior, da 6ª Turma, afirmaram à revista Consultor Jurídico que já estão triando os processos para aplicar imediatamente o precedente do STF, que estabelece 40 gramas de maconha como limite, desde que não haja apetrechos que configurem tráfico. Schietti planeja remeter os processos pendentes para os juízes de execução penal, enquanto Sebastião Reis Júnior está considerando várias opções, inclusive a concessão de habeas corpus de ofício. A Ministra Daniela Teixeira enfatizou a importância de retroagir a decisão para beneficiar réus e encerrar processos de pequenas quantidades de maconha, permitindo ao STJ focar em casos mais graves.
Como se percebe, a decisão do STF sobre a descriminalização da maconha é um passo importante, mas insuficiente para uma reforma da política de drogas no Brasil. É necessário ampliar a descriminalização para outras substâncias, regular o mercado da cannabis e adotar uma abordagem de saúde pública para o uso problemático de qualquer droga. Somente com medidas integradas e abrangentes, que enfrentem o proibicionismo e a criminalização, será possível construir uma política de drogas mais justa, eficiente e humana, alinhada com as melhores práticas internacionais, que promova a saúde pública e os direitos humanos.
Quando se pensa a questão da criminalização do usuário de uma substância, nós estamos falando de uma conduta que, no futuro, poderá ser vista como a criminalização da sodomia em alguns estados americanos, ou da vadiagem e do adultério no Brasil, ou seja, como peças de um museu das aberrações da utilização indevida do direito penal. Por outro lado, a criminalização do varejo da droga não afeta as grandes organizações criminosas que gerenciam os mercados ilegais, e até alimenta estas estruturas criminais. Tratar a questão do usuário de drogas com criminalização dura nada mais é do que populismo penal, acenando para a opinião pública com um problema que é grave, mas oferecendo uma resposta que é pífia. A decisão do Supremo Tribunal Federal precisa ser vista como sinalizadora de que precisamos, como sociedade, mudar o enfoque. As consequências da decisão dependem de como os atores do sistema de segurança pública e justiça penal irão dar a ela os encaminhamentos necessários para que produza os resultados que se espera.