Maria Isabel Couto
Diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado
Iris Rosa
Socióloga e Pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado
Durante o processo de construção do relatório que quantifica os episódios envolvendo disparos de armas de fogo nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pela primeira vez em sete anos constatamos que estamos diante de uma situação nova (e preocupante). Os dados apontam para o destaque de um par explosivo de problemas — o avanço de conflitos armados motivados pela disputa por territórios e centralidade da violência policial como política pública de segurança. Os dois fenômenos estão conectados e acarretam uma maior exposição da população à violência armada. Vamos aos dados.
No Rio de Janeiro, apesar da queda significativa no número de episódios envolvendo disparos de arma de fogo registrados — 50% com relação à média histórica do Instituto Fogo Cruzado (FC) –, o número de disputas entre facções do tráfico e/ou milícias atingiu o maior patamar da série histórica. O número de ataques a civis e ataques armados sobre rodas[1], dinâmicas características das disputas relacionadas ao controle territorial armado, subiram após dois anos em queda. A Zona Oeste do Rio — palco dos eventos violentos promovidos pela milícia em setembro de 2023, que resultaram na queima de 35 ônibus — concentrou uma parte significativa das disputas por território. Essa região foi a única que apresentou aumento no número de tiroteios em relação a 2022 (+53%).
Assim como aconteceu com os “tiroteios” em geral, o número de ações policiais que resultaram em disparos de armas de fogo também diminuiu — queda de 20% em relação a 2022 e de 37% em relação à média histórica. No entanto, o biênio 2022/2023 representou uma mudança de patamar do peso que as ações policiais assumiram nas dinâmicas que levam a tiroteios no Grande Rio, ultrapassando pela primeira vez a casa dos 30%. Envolvidas em pouco mais de ⅓ dos episódios de disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio, as polícias, vai ficando claro, tornaram-se também parte do problema que afeta a vida cotidiana das pessoas.
Na região metropolitana de Salvador, a situação é semelhante[2]. O número de episódios de violência armada classificados como disputas de território entre grupos armados diminuiu semestre a semestre. No entanto, outros indicadores que, em geral, caracterizam a intensidade da violência desses conflitos, como ataques a civis e ataques armados sobre rodas, apresentaram estabilidade ou aumentaram, indicando a latência e persistência da disputa violenta de territórios na região.
Os episódios de violência armada envolvendo forças policiais, por sua vez, aumentaram semestre a semestre e, em 2023, representaram 37% dos casos registrados pelo Instituto Fogo Cruzado. A ocorrência de chacinas também aumentou no período analisado, tanto em ações policiais, quanto fora delas. No caso das chacinas policiais, elas se tornaram ainda mais letais, sobretudo no segundo semestre de 2023, quando a média de mortos em chacinas policiais chegou a 4,7 (um aumento de 35% em relação ao segundo semestre de 2022 e equivalente à média mais alta já atingida no Rio de Janeiro, em 2022).
Na região metropolitana do Recife, pela primeira vez desde que o FC iniciou sua atuação no local, o grande destaque foi a violência policial. A violência armada envolvendo a ação das polícias chamou atenção não pela sua proporção, mas sim pelo seu crescimento — um aumento de 48% se comparado a 2022 e de 41% se comparado à média dos anos anteriores — atingindo o recorde da série histórica. Foi também o ano com o maior número de chacinas policiais, com destaque para o mês de setembro, quando houve a maior já registrada, com 9 mortos.
O aumento da violência policial não produziu como resultado a diminuição de outros indicadores de violência armada, pelo contrário: em comparação às médias dos 4 anos anteriores, em 2023 cresceram indicadores de violência armada no Grande Recife associados aos crimes de ódio (+28%) e à violência contra mulheres dentro de casa (+26%). Aumentaram também as chacinas (+57%) e os ataques armados sobre rodas (+45%) relacionados às disputas entre grupos armados e a atuação de grupos de extermínio.
A convergência de dinâmicas de violência armada nestas três populosas e importantes regiões metropolitanas do país, a despeito das diferenças históricas significativas da sociabilidade violenta entre elas, preocupa — ou melhor, deveria preocupar. A propagação de disputas pelo controle territorial por grupos armados Brasil afora, associada ao crescimento — e mesmo descontrole — da violência policial, aponta para a crise nacional do modelo de segurança pública adotado no Brasil: a guerra às drogas. É uma crise que, embora já seja estruturante da segurança no país, se agravou justamente em um ano marcado pelo início de gestões executivas estaduais e federal.
Diante desse cenário, urge uma atuação enérgica da União. Mas a atuação federal não pode apenas replicar o modelo de política adotado nos estados. Pelo contrário, a União, a partir da sua perspectiva única, deveria analisar as ações estaduais para propor soluções que rompam a lógica de violência que se perpetua e escala. Os dados do Fogo Cruzado são explícitos: a atuação de agentes de segurança do Estado tem, cada vez mais, colocado em risco a vida de cidadãos, quando sua tarefa constitucional é protegê-los. A União não pode continuar alheia a essa realidade: é necessário tirar, em definitivo, o SUSP do papel, combater os braços políticos das facções e milícias que atuam em todo o país e cobrar dos estados uma gestão pública e profissional da segurança pública — calcada na construção de planos e no monitoramento deles com participação da sociedade civil.