Múltiplas Vozes 08/03/2023

A Corresponsabilidade no Controle de armas: temos modelos para seguir

A etapa que falta é a possibilidade de controlar as armas de quem historicamente sofre os menores controles por sua posição econômica e racial

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No Brasil, o tipo de controle sobre as armas é um demonstrativo do tipo de democracia vivida. Como demonstrou Cidjan Santarém Brito, a permissão para ter arma no Brasil é construída historicamente sob a égide racial e econômica, portanto, para uma pequena parte da população. Entretanto, a política armamentista desenvolvida no período do governo Bolsonaro intensificou as consequências previsíveis e aumentar o controle sobre a posse das armas tornou-se uma salvaguarda para a democracia, além de fazer parte de uma política de segurança pública.

A possibilidade de ameaça aos Poderes constituídos e à democracia mostrou-se como evidência quando, após as eleições, CACs foram convocados para irem para frente dos quartéis do Exército e para a invasão às sedes dos Poderes em Brasília. Mas também pelo controle se tornar imprescindível diante de desvio das armas legais, como diversos fatos ocorridos semelhantes aos de outubro de 2022.

Há um baixo controle sobre a posse e o trânsito das armas, mas não por falta de mecanismos. No Brasil, há diversos sistemas que poderiam ser referências para a implementação de uma política de controle. Apenas para exemplificar, a racionalidade de controle utilizada para controlar o trânsito de pedestres e veículos é um nítido caso que contempla regulamentação de ações tidas como administrativas e delituosas; um sistema informatizado com registro individualizado de pessoas e objetos; e diversidade de agências colaborativas e em rede.

Segundo o Sistema Nacional de Trânsito, o Registro Nacional de Veículos automotores consta o registro de 115.116.532 veículos (RENAVAM, 2022) e Registro Nacional de Condutores Habilitados o registro de 79.921.178 pessoas habilitadas (RENACH, 2022). Esses dados são construídos em cada unidade federativa pela autoridade local e compartilhados com diversas agências para controle e fiscalização. Os veículos têm diversas partes com numeração própria e constantes no registro. As pessoas condutoras também têm diversos dados cadastrados e compartilhados. Em ambos os tipos de registros, há histórico de infrações e crimes, situação atual e possibilidade de pesquisa para fiscalização com apenas um dos dados disponíveis. Essas informações nacionais integram bases de dados locais, sendo possível o acesso por agentes autorizados das Guardas Municipais, das Policiais Civis, Militares, Federais, Rodoviárias Federais, DETRANs de outras unidades federativas e demais agências conveniadas.

Contextualizando com o controle sobre o porte e propriedade de armas, o compartilhamento das informações sobre todas as características das armas previamente cadastradas auxiliaria em todas as fases de controle da criminalidade, tanto das políticas de controle do fluxo de armas em determinada região quanto da atividade policial local.

O Sistema Nacional de Armas, gerenciado pela Polícia Federal, e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, gerenciado pelo Exército Brasileiro, não compartilham os dados das armas registradas e dos portes de arma com as Polícias Militares e Civis em fluxo contínuo, da mesma maneira que há em relação ao trânsito, e que poderá ser com o Projeto de Lei 5.719/19, apenas policiais civis previamente cadastrados pela PF têm o acesso. Mas além de compartilhar, há a necessidade de registrar com a lógica voltada para a segurança pública enquanto Política de Segurança e enquanto rito de controle da criminalidade. Assim, cada parte das armas seria registrada, inclusive as características únicas que auxiliariam na possibilidade de perícias como, por exemplo, as características das raias no cano que influenciam no exame de balísticas, invertendo o processo de investigação de identificação da arma pelo exame de balística para confrontar as informações.

O compartilhamento das informações sobre a existência de armas registradas no endereço ou de a pessoa a ser abordada influenciaria também nos protocolos de atendimento de ocorrências: a aproximação para intervenção policial teria mais efetividade com mais e melhor informação, o que não houve na aproximação das equipes da PMDF recebidas a tiros por filho de CAC e da PF atingida pelo político Roberto Jefferson.

Outro ponto a ser considerado é a centralização do registro em duas instituições nacionais. No sistema de trânsito, o registro e a competência para autorização é local, assim como a possibilidade de suspender ou cancelar a autorização. O controle, por exemplo, dos mais de dois mil clubes de tiros estaria sob responsabilidade da autoridade policial judiciária local. Assim como a responsabilização individual por (in)ações inadequadas ou delituosas.

Além do registro, a lógica do controle do trânsito estabelece um período de autorização e licenciamento. Desta forma, condutores e veículos são submetidos a exames periciais para a continuidade da autorização. Estabelecendo a mesma lógica, os exames psicológicos e testes de habilidades para portar armas teriam um período para renovação, assim como a obrigatoriedade de apresentação das armas para vistoria em determinado período.

Neste sentido, o histórico de pouco controle sobre as armas no Brasil foi construído e os recentes fatos apresentaram uma oportunidade para mudanças e de incorporação de práticas. Como salientamos, não é por falta de recursos e conhecimentos. Há sistemas informatizados, práticas organizacionais, fluxos colaborativos, demandas cotidianas em diferentes agências que podem ser adotadas e que corroborariam para o compartilhamento de informações e responsabilidades. Mas compartilhar responsabilidades é compartilhar também poderes. Além disso, a etapa que falta é a possibilidade de controlar as armas de quem historicamente sofre os menores controles por sua posição econômica e racial. Inclusive a arma deste grupo sofre menos controle que um veículo, mesmo apresentando potencial mais letal e sendo um possível instrumento de ameaças a agentes do Estado, aos poderes constituídos e à democracia.

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