A Câmara de Gás da PRF: Morte por confinamento em um cubículo de uma viatura
O episódio nos remete não só a atrocidades como as que ocorreram no campo de concentração de Auschwitz. Ele nos faz lembrar que os camburões de nossas viaturas policiais representam a continuidade do papel dos porões dos navios negreiros que aportavam em nosso país no início de nossa história como nação
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Dia 25 de maio, uma quarta feira. A manhã ainda não chegara ao fim em Umbaúba, pequena cidade no sul de Sergipe, com cerca de 25 mil habitantes. Onze horas de uma manhã que parecia como outra qualquer, mas que acabou em um trágico e grotesco evento que reverberou país afora e até mesmo no exterior.
Às margens de uma rodovia federal, a BR-101, um homem de 38 anos, negro, com um nome comum, aposentado por esquizofrenia (doença mental crônica e incapacitante, conhecida como distúrbio da mente dividida) é abordado por uma equipe composta por três agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), instituição responsável pelo policiamento e patrulhamento da malha rodoviária brasileira com jurisdição federal. Genivaldo, esse era seu nome, conduzia sua moto pela rodovia infringindo duas regras: não usava capacete e não tinha habilitação para conduzir o veículo, infrações bastante comuns, em especial pelo interior do país.
Durante a abordagem, um sobrinho da vítima, que acompanhou tudo, chegou a informar aos agentes que seu tio era portador de transtornos mentais. Com Genivaldo os policiais encontraram cartelas de medicamento em um dos bolsos de sua calça. Agitado, Genivaldo reagia dentro do esperado para alguém em suas condições e não compreendia o que teria feito de errado. São ouvidos xingamentos contra o abordado. Os policiais então fazem uso de spray de pimenta e a situação segue sua escalada rumo a um trágico desfecho.
Graças a populares, tudo é registrado em vídeo. Talvez, se não fossem essas imagens captadas por celulares, esse pudesse ser apenas “mais um” caso que se tornaria uma unidade numérica na estatística da nossa conhecida elevada letalidade policial, que não admite, mas acaba por escolher, via de regra, pessoas de um perfil conhecido: negros e pobres.
A abordagem prossegue e Genivaldo é amarrado nas mãos e nas pernas, para em seguida ser forçado a entrar no cubículo da viatura (porta-malas). A vítima debate-se e recebe spray de pimenta no rosto. Com a maior parte do corpo dentro do cubículo, uma densa fumaça é então visualizada nas imagens. A fonte da fumaça está nitidamente dentro da viatura. A tampa do porta-malas é forçada, criando um ambiente onde a fumaça vai tomar conta de todo o espaço disponível, toda a atmosfera.
Uma hora depois, temos o resultado: Genivaldo, levado a um hospital, está morto! Deixa uma viúva com quem tinha um filho de 7 anos e um enteado de 18.
O caso passa então a repercutir, e a PRF então emite uma primeira nota, na qual afirma que Genivaldo “resistiu ativamente a uma abordagem” e que, por esse motivo, “foram empregados técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção“. Após as reações de moradores, da sociedade civil, de autoridades e de diversas instituições, a PRF muda seu “tom” e passa a expressar uma indignação pelo acontecido.
Em termos periciais, o primeiro laudo a ser divulgado mostrou que a morte se deu por “asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda”. Embora existam autores que utilizam o termo asfixia mecânica de modo generalizado para um grupo de eventos, esse não é certamente o termo mais adequado para o caso, embora isso não mude a essência do que foi o evento. O que temos aqui é uma morte por asfixia, causada por modificação do meio ambiente, na modalidade que denominamos Morte por Confinamento.
A explicação técnica: a morte ocorre quando uma pessoa permanece em um ambiente de ar não renovável, cuja composição torna impossível o atendimento das necessidades orgânicas básicas do indivíduo. O percentual normal de oxigênio necessário para o processo respiratório é da ordem de 21%. Quando esse percentual cai na mistura gasosa passamos a correr o risco dos efeitos da falta de O2, ou seja, quando outros gases elevem seu percentual na mistura, baixando o de O2, os problemas são previsíveis.
Mais do que questionar as diretrizes dos cursos de formação dos agentes da PRF e manuais dessa instituição, parece importante nos perguntarmos se, de um profissional de nível superior, não seria esperado que o mero uso do BOM SENSO não permitiria prever um risco de morte pela situação proporcionada ao abordado. Uma avaliação baseada nesse “bom senso” teria evitado o desfecho que esse triste episódio nos mostrou.
Após a repercussão do fato outros exames foram feitos pela perícia da Polícia Federal, entre as quais: um exame do local onde ocorreu a abordagem, empregando-se drones, georreferenciamento, simulações (talvez a viatura fosse dotada de GPS, permitindo seu rastreamento), um exame completo do veículo da PRF onde a vítima morreu; coleta de amostras buscando definir seguramente a substância gasosa envolvida (a hipótese é de que fosse gás lacrimogêneo, oriundo de uma granada, provavelmente); exames toxicológicos no corpo da vítima, também importantes para definir a substância que a levou ao óbito. Os laudos serão importantes para demonstrar em detalhes tudo o que aconteceu.
A “Câmara de Gás da PRF”, que hoje aparece no noticiário, faz mais do que simplesmente nos remeter a atrocidades como as que ocorreram no campo de concentração de Auschwitz. Ela nos faz lembrar que os camburões de nossas viaturas policiais representam a continuidade do papel dos porões dos navios negreiros que aportavam em nosso país no início de nossa história como nação.