Múltiplas Vozes 03/12/2025

Violência política contra agentes de segurança que evitam mortes: o perigo de provocar reflexões para preservar vidas

Análises de especialista que se tornou alvo da extrema-direita chamam a atenção para a importância da previsibilidade, da revisão das ações e das mudanças de procedimentos para constituição de protocolos legitimados

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Gilvan Gomes da Silva

1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia. Professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)

No dia 28 de outubro de 2025 foi deflagrada a operação policial mais letal no Rio de Janeiro. A operação comandada pelo governo estadual, sendo uma ação conjunta da Polícia Militar e da Polícia Civil empregando aproximadamente 2,5 mil policiais, teve como missão cumprir mandados de prisão contra lideranças da Organização Criminosa Comando Vermelho. Entre os resultados divulgados, há a apreensão registrada de 72 fuzis (totalizando 120 armas), 81 pessoas presas e 122 pessoas mortas (sendo 5 policiais). Segundo nota do governo, a operação foi deflagrada após um ano de investigação e 60 dias de planejamento, utilizando dois helicópteros, 32 blindados terrestres, drones, 12 veículos de demolição da PM e ambulâncias do Grupamento de Salvamento e Resgate. A operação teve repercussão internacional. As imagens de dezenas de corpos enfileirados na rua trazidos por familiares e da guerra urbana travada e de policiais emboscados nas matas foram veiculadas em diversas mídias e em vários países.

Muitas reportagens foram produzidas a respeito e, em alguns casos, houve a tentativa de entender o impacto da operação. Para tanto, foram convidados diversos analistas, entre eles, Rodrigo Pimentel, ex-capitão policial militar do Rio de Janeiro, que iniciou a entrevista dizendo que “não troco a apreensão de quatro policiais pela apreensão de 200 ou 300 fuzis, de imediato considero isso uma grande tragédia”. Por outro lado, classifica a operação como uma ação de guerra, não de polícia. E entende a necessidade de recuperação do território. Em outro momento e em outro canal de TV, o analista e ex-policial diz que não existe a possibilidade de ocorrer uma prisão de um líder sem enfrentamento.

Entretanto, foram as declarações de Jacqueline Muniz que alcançaram maior repercussão ao analisar a execução da operação e os possíveis impactos. Para fins didáticos, separei algumas declarações em análise da execução individual, análise da operação em campo e análise da política de segurança. Quanto à ação individual, foram feitas críticas ao efetivo escalado que, segundo a analista, necessitaria de profissionais especializados com conhecimento de mobilidade tática e treinamento. A pesquisadora afirmou que um dos policiais que foi assassinado era um policial “generalista”, isso é, sem formação tática para a devida operação. Destacou ainda que, na logística do crime, o fuzil tem uma simbologia construída, mas requer treinamento específico, é pesado, tem tamanho que dificulta a mobilidade, sendo que as armas de porte são mais úteis, como pistola e submetralhadoras, pois têm 360 graus de enquadramento tático.

A operação em campo realizada é descrita como ocorrências que são especiais e mobilizadas por contexto que demandou disciplina tática e operacional com tiro defensivo, revertendo incertezas, riscos e perigo real com objetivo de apresentar baixa zero. É uma produção de repressão com resultado provisório no tempo e no espaço; e o planejamento malfeito sabota o resultado policial por diferentes motivos, sejam estes político-partidários ou má fé. Para a especialista, há três protocolos (da Polícia Civil, da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública) criados por ela e que poderiam ter orientado a operação. Nesse sentido, uma das conclusões apresentadas é de que a operação foi marcada pela ausência do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Corpo de Bombeiros, da Guarda Municipal e de uma Central de Crise que poderia informar e controlar os possíveis danos à população, inclusive o trânsito de pessoas em outras partes da cidade. Jacqueline Muniz citou outras operações que envolveram a mobilização de grande efetivo e suas consequências, como, por exemplo, a implementação da política de ocupação conhecida como UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) que necessitou aumentar o efetivo em 12 mil agentes por ser uma política com escassez da capacidade repressiva no tempo, saturando a capacidade ostensiva da PM e inviabilizando a pronta resposta na emergência em diversos espaços do Estado, situação semelhante ao dia da operação de 2025, quando uma grande parte do Rio de Janeiro ficou sem policiamento.

Para a ex-diretora do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública da Senasp (Ministério da Justiça) e ex-coordenadora de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, a atual política para a pasta de Política de Segurança Pública do Rio de Janeiro é a lógica do Senhor da Guerra, do profeta do caos, do aparelhamento do medo, com atuação policialesca, do fazer a guerra para vender a paz. E sintetiza a análise da operação: “Qual foi o prejuízo dado ao Comando Vermelho? Será recomposto em duas semanas”.

As reações à análise de Jacqueline Muniz foram diversas, desde críticas a violências, chegando a linchamento moral e virtual com ameaças à integridade física. Algumas críticas foram em relação à conclusão da análise sobre a ação policial e a eficácia e eficiência da operação. Essas críticas vieram de agentes do campo de segurança pública ou de grupos que legitimaram a operação. Um resumo dessas críticas pode ser posto em relevo na fala da policial militar Monique Busson, que participou da operação, mas também é influenciadora digital com 672 mil “seguidores”: “é uma professora de uma faculdade federal … e eu coloquei em xeque se ela coloca em prática a sua teoria e não obtive resposta até agora”. Em outra postagem, a policial militar questiona a “especialidade” de Jacqueline Muniz por não ter prática, um estágio e, portanto, não teria propriedade para analisar.

Outras reações foram em relação à conclusão sobre a Política de Segurança do governo. Foram empregadas estratégias de desqualificação com violência e de arregimentação de seguidores para formação de um linchamento moral virtual que impacta a vida profissional, as relações presenciais e virtuais, inclusive a sensação de segurança da analista. Personalidades políticas da extrema-direita capitalizaram o episódio. O deputado Kim Kataguiri, usando o perfil oficial do Instagram com 1,7 milhão de seguidores, publicou no dia 31 de outubro críticas a partir de “recorte” de falas para desqualificar a análise e criticou a estética da professora, obtendo mais de 64,4 mil “curtidas”, 2.166 comentários, 21,2 mil replicações do vídeo que teve mais de um milhão de visualizações. A vereadora Talita Galhardo, da Comissão de Segurança Pública e Defesa Social, publicou um vídeo com xingamentos desqualificando a professora-adjunta do Departamento de Segurança Pública e do Mestrado de Justiça e Segurança Pública (DSP) e divulgou o “perfil oficial da professora”, uma estratégia de condução de “seguidores” para o linchamento virtual. Já o deputado Nikolas Ferreira repetiu a estratégia de Kataguiri e postou mensagem desqualificando a professora, sendo visualizada por 1,1 milhão de vezes, com 6.319 republicações, 314 comentários, 52,3 mil curtidas; 1.083 contas salvaram o conteúdo.

A dinâmica destas postagens segue uma lógica de linchamento virtual usada em outros momentos, inclusive com outras analistas. A especialista Carolina Soares sofreu violência idêntica na forma e no conteúdo por integrantes do governo Bolsonaro em 2022. Geralmente são ataques misóginos contra a aparência e a postagem é um chamado para que os “seguidores” comentem, republiquem e enviem para outras redes sociais, desqualificando as pessoas profissionalmente e na vida privada. Há mensagens com ataques de cunho moral, psicológico e ameaças físicas como as violências sofridas por Jacqueline Muniz, por exemplo.

Jacqueline sofreu violências e ameaças não só pela assertividade do que disse, mas também pelo que representa. O ex-capitão, por exemplo, disse na entrevista que é quase impossível prender um chefe de organização criminosa, entretanto, no dia 27 de novembro de 2025, quase um mês após a operação, a Polícia Civil prendeu um dos traficantes do Comando Vermelho mais procurados no Rio de Janeiro, sem mortes de policiais e de suspeitos. Mas por que o erro da análise não recebeu a mesma violenta manifestação, inclusive de agentes da segurança pública que colocam a própria vida em risco? Porque suas análises seguem a lógica construída pela tradição do campo de controle social, do campo da segurança pública.

Desta forma, as análises de Jacqueline Muniz provocam reflexões sobre os fatos e sobre o campo. Enquanto debate as ações policiais, destaca a importância da previsibilidade, da revisão das ações e das mudanças de procedimentos para constituir protocolos legitimados, desconstruindo sentenças como, por exemplo, “cada ocorrência é uma ocorrência” e “escola é escola e rua é rua”; e, entre outras contribuições, destaca a importância das evidências e da cientificidade enquanto entes constituintes da formação dos policiais “generalistas” e especializados. Essa lógica faz ruir a premissa altruísta como fonte geradora da ação e sua desconstrução diminui a imagem de herói. Entra a imagem de técnico especialista em mediação, intervenção e garantia dos direitos.

Para os agentes do campo, é um questionamento a tudo que foi ensinado tradicionalmente e vivenciado, é um questionamento ao reconhecimento da necessidade do altruísmo, o único valor compensatório para a submissão ao sofrimento psicológico, físico e socioprofissional. Caracterizar a “morte da guerra” como evitável é desconstruir o sentido da formação que não ensinou completamente como agir em determinada situação, mas foi a socialização que colocou a então identidade em segundo plano e moldou uma identidade total, que influenciará todas os papeis sociais pretéritos e futuros. É deslocar o sentido da profissão e, por consequência, do principal papel social que rege todas as suas relações sociais. Pelas falas dos especialistas, do ex-capitão e da professora, de um lado as mortes ocorridas são lamentadas; afirma-se que não se pode trocar a apreensão de fuzis pela vida dos colegas, mas entende-se que a operação é necessária, mesmo com o risco decorrente de um cenário de guerra civil; do outro, a acadêmica que apresenta evidências de que outras ações podem ter maior impacto na organização criminosa do que a ação que resultou em tantas mortes.

Por fim, provoca o questionamento sobre quem pode falar sobre segurança pública. A professora do Departamento de Segurança Pública, com participações no poder executivo com implementação de diversos programas de segurança pública, coordenadora e professora de diversos cursos para policiais, inclusive gestores, faz parte do campo de segurança pública? Ao debater e apontar os interesses não-técnicos nos processos decisórios de escolhas de problemas, de construção da solução policialesca e representante do “Senhor da Guerra”, e ao apresentar alternativas, instiga a reflexão sobre outros agentes protagonizando a intervenção e de outras formas, a reflexão reorganiza personagens no campo da segurança pública, diminuindo capital simbólico de uns e aumentando o de outros.

Portanto, as reações às falas das especialistas são violências políticas instrumentadas para a manutenção de uma política violenta que simboliza a manutenção dos capitais culturais e simbólicos vigentes, da lógica da centralização da polícia e das ações de repressão que podem ser instrumentalizados para diversos fins, inclusive político-partidários. As tentativas de calar Jacqueline Muniz demonstram a tentativa de manter uma necropolítica e de conservar estruturas institucionalizadas em que a morte, inclusive dos agentes de segurança pública, tornam-se o mote da ação do campo.

 

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